Eu construí uma história que começou no chão duro, mas que foi atravessada por muitas primaveras. Uma história que nasceu entre roupas lavadas à mão no tanque, pão feito em casa partilhado com cuidado e o silêncio da noite iluminado apenas pelo lampião. Cresci vendo minha mãe remendar o mundo com linha e agulha, e meu pai erguer casas para outros enquanto a nossa se sustentava de coragem. Ali, entre cadernos herdados dos irmãos mais velhos e sonhos que eu ainda não sabia nomear, fui aprendendo que a vida pode ser árida, mas sempre guarda um canto onde algo floresce.
Meu pai, pedreiro, não sabia ler nem escrever. Minha mãe tinha chegado apenas até a quarta série, mas lia como quem acende luz em casa que ainda está sendo construída. Foi dela que ouvi a primeira grande profecia da minha vida: “A educação é a única coisa que nunca vão tirar da gente.”
Ela dizia isso com a convicção de quem conhece a fome por dentro e a palavra por dentro da palavra. E foi assim que minha família inteira, meio tropeçando, meio insistindo, foi salva pela educação. Uma salvação lenta, caseira, quase artesanal.
Fui prodígio. Bom aluno, bom filho. Com dezessete anos, já era contador de registro carimbado, CRC e tudo. Aos vinte, morava sozinho em Curitiba, trabalhava numa grande corretora de valores, operava na Bolsa de Valores do Paraná e cursava Administração. O futuro estava até enquadrado na parede, tão organizado que parecia até pouco para a fome que eu sentia. Uma fome diferente, sem nome, que só quem vive entende.
Eu morava ao lado do Teatro Guaíra. Isso, talvez, tenha sido o primeiro sinal. Via tudo: Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Maria Della Costa. As luzes, os corpos, as palavras que incendiavam o palco e me deixavam inquieto por dentro. Até que, um dia, quando cursaria o último ano de Administração, fiz vestibular para Artes Cênicas. Passei. E nunca mais voltei para a velha faculdade. Nem para trancar, nem para explicar. Era o teatro chamando. E eu, finalmente, atendendo.
Os anos na PUC/PR foram um renascimento. Bonitos, mas custosos. Esquecer a vida promissora e recomeçar do zero não teve nada de romântico. Exigiu coragem abandonar o certo para perseguir algo que ainda não sabia nomear. Que, no fundo, sempre foi o verdadeiro. Sinais evidentes da vida. Penso hoje.
Quando o dinheiro acabou, a realidade me sacudiu com força. O teatro parecia impossível. A vida, mais ainda. Foi assim que cheguei a São Paulo em 1989. Tinha 24 anos e vim com a mala meio vazia e a esperança meio cheia, querendo começar alguma coisa que eu ainda não sabia o que era.
Fui parar na ECA-USP para continuar estudando. Talvez um mestrado, quem sabe. Mas a vida, que sempre costura destinos com linhas invisíveis, tinha outro plano: Rodolfo. Quando o conheci, tudo o que parecia improvável começou a virar possibilidade. Criamos Os Satyros. E dali em diante, o improvável virou rotina, e o impossível virou matéria-prima.
Trinta e seis anos se passaram desde então. Uma vida inteirinha no teatro. Mais de 180 peças montadas, turnê por mais de 40 países, centenas de prêmios, inclusive internacionais (Quênia, Estados Unidos, Índia, Cuba, Cabo Verde). Mexemos com as placas tectônicas da cidade de São Paulo e forjamos um bairro inteirinho. O Baixo Augusta só existe porque, um dia, escolhemos fincar ali o nosso trabalho. E a SP Escola de Teatro, hoje o maior centro de formação teatral do país, um dos maiores do mundo. E, acima de tudo, uma existência dedicada a fazer da arte não só um ofício, mas um modo de respirar.
Hoje acordei saudoso. Talvez pela primavera. Talvez porque, pela 26ª vez, realizamos as Satyrianas. Esta edição é especial. São 482 atrações. Quase quinhentas maneiras de contar o mundo. Ou talvez seja também porque acabamos de voltar de Cuba, onde participamos do Festival de Teatro de Havana com nosso “A Casa de Bernarda Alba”. Foram 31 artistas atravessando o mar juntos. Uma pequena revolução dentro da nossa própria história.
E tudo isso acontece agora, num tempo em que viver pede urgência. Em que a arte pede ressignificação. Em que o peito pede cuidado.
De onde vim até aqui, muita coisa mudou. Exceto uma: sigo acreditando, como minha mãe dizia, que há algo que ninguém pode tirar da gente. A educação.
Feliz primavera a todas e a todas as pessoas!
