Artista do Satyros e diretor da SP Escola de Teatro avalia sua participação no Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc em Santos
por MIGUEL ARCANJO PRADO
Artista com experiência em múltiplos festivais pelo mundo em mais de três décadas de carreira, Ivam Cabral foi um dos curadores convidados pelo Sesc São Paulo para as Atividades Formativas do Mirada 2022, o 6º Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado no Sesc Santos, na Baixada Santista, entre 9 e 18 de setembro de 2022, com 36 espetáculos de 13 países.
Durante uma pausa entre peças e palestras, o cofundador da Cia. de Teatro Os Satyros, o um dos mais bem sucedidos grupos teatrais do Brasil com 33 anos de trajetória e mais de uma centenas de prêmios nacionais e internacionais, concedeu entrevista exclusiva ao Blog do Arcanjo.
Ivam é também diretor executivo e cofundador da SP Escola de Teatro, um dos principais centros de formação em artes cênicas da América Latina com pedagogia inovadora de repercussão internacional. A seguir, o ator, dramaturgo, escritor, cineasta e psicanalista analisa sua passagem pelo Mirada 2022 e o legado do evento para o teatro.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado – Qual o balanço que você faz da sua participação na curadoria das Atividades Formativas do Mirada 2022?
Ivam Cabral – Certamente o Mirada se encontra hoje como um dos maiores festivais do planeta. Como artista, já passei por eventos gigantescos, tais como os festivais de Edimburgo, Avignon ou Hollywood, e o posso afirmar com convicção que o Mirada já atingiu esse status de magnitude e relevância. Tivemos nessa edição 36 espetáculos, de 13 países, uma produção polifônica que reflete as diversidades de linguagens e temáticas de pesquisas sérias e comprometidas com o nosso tempo. Além disso, a organização do Sesc é impecável, tudo funciona milimetricamente. As áreas de convivência são muito acolhedoras e propiciam encontros potentes entre artistas, estudiosos e público. As atividades formativas e pedagógicas, por sua vez, levaram a discussões apaixonadas e cheias de proposições. Tudo dentro de um clima íntimo e acolhedor. Foi a retomada mais que perfeita ao modo físico.
Miguel Arcanjo Prado – Como foram as trocas com os outros curadores, Giovana Soar e Jhonny Salaberg?
Ivam Cabral – A Giovana Soar eu conhecia desde o final dos anos 1980, ela era contemporânea minha no curso de artes cênicas na PUC do Paraná, portanto a acompanho desde o início de sua carreira. O Jhonny Salaberg conheço há menos tempo, ele esteve na SP Escola de Teatro nos últimos anos, primeiro apresentando o espetáculo Buraquinhos aos nossos estudantes em 2019, e no ano passado foi a vez de Desfazenda. Ele é muito jovem, está com 27 anos, mas tem uma potência criativa de pensamento muito grande. Não poderiam ser duas pessoas mais incríveis para dividir essa experiência, os dois vêm de teatro de grupo, assim como eu, as nossas apreensões são muito parecidas, foi um encontro muito poderoso e agradeço ao Sesc por isso.
Miguel Arcanjo Prado – O Mirada discutiu decolonialidade ao mesmo tempo em que homenageou Portugal, o colonizador do Brasil. O que acha disso?
Ivam Cabral – Penso que foi uma homenagem absolutamente justa. Acho que não tem problema algum Portugal ser o país colonizador, temos muito o que aprender com eles e aqui assistimos a espetáculos incríveis. Estamos em um período de reorganizar ideias, creio que agora seja um momento conciliatório, e não de guerrilha. Nossa geração e as futuras têm que apaziguar essas guerras culturais, porque o teatro talvez seja o único grande espaço público onde a gente possa fazer as pazes com a nossa história. A nossa ideia sempre foi propor um olhar crítico sobre nossas origens, portanto a perspectiva decolonial – que é muito cara a mim, em particular, já que é um viés que trabalhamos há muitos anos nos Satyros e na SP Escola de Teatro – era absolutamente necessária para isso. Em nossa mirada pedagógica, contudo, fizemos questão de estabelecer diálogos construtivos entre essa homenagem e a nossa história. São posturas compatíveis e necessárias. Temos que revisitar e reler o passado, mas sempre vislumbrando o futuro.
Miguel Arcanjo Prado – Qual panorama você traçaria do recorte de produção latino-americana e ibérica apresentado no Mirada 2022? E da brasileira?
Ivam Cabral – Esse panorama reflete exatamente o que está acontecendo no mundo nesse momento. Tivemos espetáculos criados no meio da pandemia, muitos com ensaios que ocorreram pelo Zoom. Os artistas foram muitos corajosos e expuseram a necessidade de se continuar vivendo e lutando nesse tempo tão cruel.
Acredito que as peças latino-americanas, onde as brasileiras se incluem, são bastante múltiplas em seus dispositivos cênicos, mas convergem em relação a temas contemporâneos incontornáveis, como o racismo estrutural, a xenofobia, a relativização da veracidade da história oficial e suas versões, a importância das pautas identitárias, críticas à apropriação cultural, as questões ambientais, as guerras etc. São assuntos complexos, mas que foram trazidos à tona por meio de um prisma de esperança.
Miguel Arcanjo Prado – Sua trajetória é marcada pela participação em grandes festivais do mundo com a Cia. Os Satyros, como o Fringe de Edimburgo. Qual a importância de festivais para o teatro?
Ivam Cabral – Os festivais são sempre portas de entrada para mundos que a gente desconhece. É muito interessante ver os procedimentos cênicos, os temas que se apresentam, como coletivos do mundo todo estão trabalhando. Outra questão é a oportunidade que isso proporciona aos grupos. Quando atuamos pela primeira vez no Festival de Edimburgo, nos anos 1990, vieram em seguida dezenas de convites a partir dos contatos que lá fizemos. Durante os dois anos seguintes, circulamos com montagens e projetos gerados ou fomentados durante o festival. No Mirada, temos programadores de festival do mundo todo, que são convidados e vêm a Santos para assistir aos espetáculos e depois proporcionarão novas oportunidades para que esses coletivos participantes continuem a circular e se apresentar mundo afora.
Miguel Arcanjo Prado – Como você sai deste Mirada 2022?
Ivam Cabral – Saio renovado do Mirada 2022, encontrei aqui pessoas muito interessantes, um ambiente democrático e aberto ao diálogo inteligente. Ações como essa são fundamentais para evidenciar a importância da civilidade, do estudo e da cultura em todas as suas formas como motor para o desenvolvimento de um país. Sempre gosto de lembrar que a indústria criativa é uma das maiores forças de produção e renda no mundo, as políticas públicas e as forças empresariais precisam levar isso em consideração se quisermos mesmo pensar num planeta sustentável, tolerante e ciente da riqueza que nossas multiplicidades étnicas, geográficas, culturais e ideológicas representam.
FONTE: Blog do Arcanjo