MEMÓRIAS | Phedra D. Córdoba: a primeira travesti a ter contrato estável com uma companhia de teatro no Brasil

É preciso, antes de tudo, colocar os pingos nos is. Muito se fala de Claudia Wonder, que esteve no Teatro Oficina no final dos anos 1990. E é verdade: Claudia defendeu com fervor a luta de Zé Celso, admirava profundamente o gênio que ele foi. Mas sejamos exatos: sua participação com o grupo foi breve, circunstancial. Até porque Claudia, figura essencial na história do teatro brasileiro, já possuía uma carreira solo sólida e respeitada. Além disso, convém lembrar: o Oficina ainda não era o que viria a se tornar. Sua reinauguração, no espaço projetado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, aconteceria apenas em 1993, com a montagem de Ham-let, de Shakespeare, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. Um marco incontornável na história do teatro brasileiro.

Mais ou menos nessa época, os Satyros habitavam o Teatro Bela Vista, na rua Major Diogo. Foi ali que testemunhamos algo inédito. Talvez a primeira transição de gênero no teatro brasileiro. Big Loira, Savanah Meirelles, a nossa Bibi, que conhecemos ainda menino, aos 18 anos, transicionou durante o processo de nosso espetáculo Viva a Palhoça, que estreou em 1992 no Centro Cultural São Paulo.

Mas hoje quero falar de Phedra D. Córdoba. A gente a conheceu em 2001 e, a partir de então, sua história se entrelaçou com a nossa de maneira definitiva. Foram dezenas de peças, incontáveis viagens – Paris, Berlim, Amsterdã, Havana, Buenos Aires, Santa Cruz de La Sierra, entre tantas outras – até sua morte, em abril de 2016. Phedra partiu como sempre viveu: em cena. Estreou Pessoas Sublimes em 12 de fevereiro daquele ano, fez apenas a primeira apresentação e, no dia seguinte, foi internada. Viria a falecer em 9 de abril de 2016. Aliás, um dia volto a falar sobre isso. Pessoas Sublimes era uma peça que falava da morte, e tenho para mim que a gente a concebeu como um ensaio de despedida dela.

Entre sua primeira atuação nos Satyros, em Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte (2001), até Pessoas Sublimes, Phedra brilhou intensamente em nossos palcos. Foram muitos trabalhos: Transex (2002), A Filosofia na Alcova (2003), A Vida na Praça Roosevelt (2005), Inocência (2006), Divinas Palavras (2007), Hipóteses Para o Amor e a Verdade (2009), Cabaret Stravaganza (2011), entre outros. Phedra foi nossa primeira atriz em um tempo em que travestis e transexuais não tinham lugar algum no teatro brasileiro.

Tenho lembranças amargas desse caminho. No Prêmio Shell de 2003, quando Transex concorria (e venceu em “Melhor Figurino”), fomos com Phedra à celebração, um jantar elegante no Itaim Bibi. Os olhares sobre ela eram de cortar o coração. Me lembro de uma grande atriz do teatro paulista me perguntando, sem pudor, o que Phedra fazia ali, se nem era concorrente. Juro, isso aconteceu!

Outro episódio foi quando Phedra esteve em nossa casa pela primeira vez, num jantar, por volta da mesma época. Eu e Rodolfo morávamos no mesmo prédio de Alberto Guzik e Antonio Araújo, perto da Paulista. No dia seguinte, a síndica bateu à nossa porta. Queria saber quem era aquela senhora que havíamos recebido. Ao ouvir que era Phedra, pediu que não a convidássemos mais, pois “pegaria mal ao condomínio”. Brigamos. Phedra continuou frequentando nossa casa. O incidente, no entanto, nos levou a mudar de apartamento.

A luta seguiu. Phedra começou a ganhar notoriedade, aparecia na imprensa. A Folha de S. Paulo a acolheu, inclusive na coluna da Mônica Bergamo. Mas a mídia a tratava no masculino. Não foi uma, nem duas vezes – nem três, tampouco quatro – que buscamos repórteres pedindo que a tratassem no feminino. Na maior parte das vezes, nem resposta. Quando havia, era genérica: “o manual de estilo do jornal não permite”.

Me lembrei de tudo isso porque um analisando trouxe essa história à sessão de hoje. E pensou: somos um país sem memória. Se não contarmos, tudo isso morre. E precisamos contar, porque seguimos trabalhando com travestis e transexuais em nossa corpa artística.

Importa relembrar também que, durante todos os anos que esteve conosco, Phedra teve seu aluguel pago por nós. Sempre morou em lugares confortáveis. Havia ou não apoio, patrocínio, pouco importava. Seu bem-estar era nossa prioridade, minha e de Rodolfo.

Hoje, sucedendo Phedra, brindamos com Márcia Daylin, que carrega o título que antes era dela: Diva da Praça Roosevelt. Márcia também tem seus corres, mas essa é outra história, para outro tempo.

Por agora, é necessário marcar: Phedra D. Córdoba foi a primeira travesti a atuar de forma contínua e respeitosa em uma companhia de teatro no Brasil, por mais de quinze anos. E sua memória não pode se apagar.

Photo: Andre Stefano

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1928

Um comentário sobre “MEMÓRIAS | Phedra D. Córdoba: a primeira travesti a ter contrato estável com uma companhia de teatro no Brasil

  1. Que saudade e gratidão, salve Phedra que desbravou caminhos que sequer imaginava… Ela e os Satyros fazem parte da minha história – de vida e arte -, impossível não se emocionar. Obrigada, Ivam! <3

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