MEMÓRIA | Praça Roosevelt: Breviário de Luzes e Frestas

Fecho os olhos, faço um pequeno esforço para ouvir a Praça Roosevelt e descubro que ali lateja mais que concreto e histórias: pulsa um sismógrafo de lembranças. Afinal, já são quase três décadas no local. Um passo adiante, tropeço em fatos. Dois passos atrás, nas versões que cresceram como sombras — alongam-se ou encolhem conforme a febre de quem as conta.

Entre o que aconteceu e o que se repete até virar “foi” também, ergue-se um palco invisível. Nele, as datas ensaiam papéis de fábula. As falhas de memória improvisam sutilezas que nenhum arquivo oficial seria capaz de coreografar. Quero habitar esse intervalo não para corrigir a história, mas para escutar como ela respira quando ninguém a vigia.

Há lembranças que estalam como letreiros de néon, puxando-nos de volta à vida. Outras se apagam como bar depois da última rodada, deixando no ar o cheiro de gelo derretido e promessas por saldar.

Foi nesse claro-escuro que chegamos à Roosevelt, em dezembro de 2000, quando o centro de São Paulo ainda trocava de pele — cicatriz indecisa entre se fechar ou sangrar. Entre as rampas ásperas sobreviviam pequenos pulsares de humanidade. A Baiúca, berço da bossa nova paulistana dos anos 1950/60, já reduzida a restaurante a quilo, guardava um piano branco que, mudo, parecia salvar as canções para si. Quando fechou, em 2001, seus funcionários velaram-lhe a morte na calçada – os proprietários deviam-lhes muitos meses de salários atrasados. Ali aprendemos que luto também mora na esquina.

Ficou o Alemão — namorado da filha dos donos — corpo de cicatrizes, guardião de uma chama que a cidade preferia esquecer; um dia sumiu, talvez levado pela mesma voragem que o convertia em lenda. Restou Bartira, nascida no casarão ao lado da Escola Patrícia Galvão: via bondes, fuscas e sonhos atravessarem a praça. Contava do coreto onde o chorinho tilintava, do néon do Cine Bijou piscando como coração em estreia. Partiu há alguns anos, deixando na calçada a ternura com que tratava cada rosto desconhecido — é dessa ternura que a praça ainda vive.

E seu Renato Orbetelli, marido da dona Gilda? Na Barbearia & Charutaria Diplomat regeu tesouras de 1960 até a pandemia calar o estalo das lâminas. Na cadeira giratória repousavam magnatas – eu conheci o Antonio Ermirio de Moraes ali – e anônimos, todos à procura de espuma morna e prosa miúda. Quando a porta de aço baixou pela última vez, levou consigo o perfume de loção e o zumbido das confidências — ficamos órfãos dele e da doçura com que dona Gilda que acolhia cada um de nós como se fosse da família.

Por isso sorrio, educado, quando alguém diz conhecer a Praça Roosevelt, mas ignora Bartira e o Alemão, e acha que Diplomat é marca de carro. Falamos de cidades distintas. Praça não é desenho — é carne, tropeço, abraço repartido, coro de personagens que não cabe em placa de inauguração.

Resta-nos guardar, no bolso da memória, esses fios de voz antes que o concreto devore as últimas digitais que dormem nas frestas. Reformas virão, luminárias acenderão — mas sem o sopro de quem recorda tudo vira cenário mudo. O tempo não quer inimigos; deseja cúmplices que encostem o ouvido ao seu rangido e espalhem, em sussurro ou gargalhada, tudo o que os olhos testemunharam e o coração ainda escuta vibrando por dentro.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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