Existem pessoas que te influenciam em sua trajetória. Existem pessoas que te abrem caminhos. E, outras, que fazem as duas coisas.
Em meu percurso, fui atravessado por muita gente legal. Quando estudava teatro em Curitiba, me lembro como se fosse hoje, da chegada na cidade da peça “Feliz Ano Velho”, uma adaptação de Alcides Nogueira para o livro homônimo do Marcelo Rubens Paiva, encenado por Paulo Betti e seu grupo Pessoal do Victor.
Foi a primeira vez que ouvi falar em uma cooperativa no teatro. O Pessoal do Victor havia participado da criação da Cooperativa Paulista de Teatro em São Paulo e aquela produção era um resultado mais do que possível. Foi num encontro com esse pessoal, numa tarde no palco do Guairão, liderado pelo Paulo Betti, que se materializaria para a minha travessia inteirinha uma perspectiva de uma vida possível no teatro.
Foi assim que surgi em São Paulo, cheio de sonhos e projetando a ideia daquele grupo incrível que me apontava caminhos. Por isso, foi relativamente tranquilo e seguro estruturar o meu itinerário.
Mas o que dizer? Falar pra quem? Que interlocução eu esperaria da vida? Que texto eu queria e precisaria montar? A quem interessariam as minhas apreensões?
Em 1991, tínhamos recém-montado Os Satyros e estávamos trabalhando no Teatro Bela Vista, na Major Diogo, quando Marilena Ansaldi aportou no TBC com o espetáculo “Clitemnestra”, a partir de Marguerite Yourcenar, com direção de Antônio Araújo. Em uma tarde, estava na frente do Bela Vista quando uma senhora muito elegante se aproximou para uma conversa.
– Teatro Bela Vista? Havia um Teatro Bela Vista na rua Conselheiro Ramalho, uns anos atrás, com este nome.
Eu digo que sim, que era o Teatro da companhia do Sérgio Cardoso e que os fundadores do então Teatro Bela Vista, onde trabalhávamos, quiseram homenagear a companhia de Sérgio e de Nydia Licia.
Foi assim que conheci pessoalmente Marilena Ansaldi, que me convidou para assistir ao seu espetáculo que estava em cartaz no TBC. Curiosamente eu também já conhecia o diretor da peça, o Antônio Araújo.
Assisti deslumbrado à sua peça e, ao final, trocamos telefone. Durante algum tempo nos falamos com alguma frequência. E foi numa tarde, quando o La Villette ainda ficava na avenida Angélica, que tive uma das conversas mais reveladoras de toda a minha vida.
Mas eu ainda caminhava com os meus devaneios e continuava me inquerindo:
– Mas o que dizer? Falar pra quem? Que interlocução eu esperaria da vida?
Foi quando ouvi, em pequenas frases, o que mudaria minha maneira de encarar o meu lugar no teatro. Marilena me disse:
– A realidade não interessa ao teatro. Por isso a arte se sustenta tão somente pela abstração. E, por isso também, a poesia é necessária, para que lembremos sempre que é preciso continuar sonhando.
Sabe quando os eixos se encontram? Foi o que senti naquele momento. Parecia que, enfim, tudo fazia sentido. Aos trancos e barrancos foi dessa maneira que o teatro acabaria se ressignificando na minha vida. Através da abstração eu encontraria, a partir daí, a minha maneira de me colocar no mundo. E foi assim que surgiu, um tempo depois, nosso espetáculo de fragmentações e poética abstrata, “De Profundis”. Em Lisboa, em uma das últimas vezes que nos falamos, muitos anos atrás.
Marilena esteve nos assistindo quando estreamos “De Profundis”, no Espaço dos Satyros, na Praça Roosevelt.
– Vocês abstraíram a arquitetura teatral com este espetáculo. Isso é muito bonito, me confidenciou.
Nosso “De Profundis” transformava Os Satyros em uma cela, onde apenas 30 espectadores dividiam o espaço com o lugar da cena. Falamos sobre isso também. Eu disse:
– Não nos interessa o público pelo público. Estamos pensando na qualidade deste espectador. E não tem a ver com o privado, que sempre pensa na especulação ou no capital.
Ela sorriu.
– É. Triste do povo que vive sem utopias.
Nosso último encontro foi no Theatro Municipal, em 2017, na entrega dos prêmios da APCA, quando Marilena venceu o Grande Prêmio da Crítica por “Paixão e Fúria – Callas, o Mito”, produção da Studio 3, de Vera Lafer, com roteiro e direção de José Possi Neto.
Marilena morreu nesta madrugada. Tinha 87 anos e vai deixar muita saudade.