LUTO | Resolvi escrever uma carta para você

Meu amor,

Resolvi escrever uma carta para você, apesar de falarmos todos os dias, o dia todo. Escrevo porque queria te dizer coisas que a fala não alcança e só o silêncio pode suportar. E porque, mesmo sabendo que ninguém pode atravessar essa perda no seu lugar, ainda assim quero te estender a mão. Mas estas mesmas palavras, ainda que precárias, vêm na tentativa de pensar sobre a falta e tentar te amparar nesse vazio onde só cabe quem sente. Palavras para te lembrar que você não está sozinha, mesmo na solidão mais profunda do seu luto.

Você chegou ao Satyros quando mal havia saído da adolescência. Trazia nos olhos aquela seriedade que algumas pessoas só aprendem depois de muitas quedas, mas que em você parecia já ter nascido pronta. Nunca foi de excessos. Nunca das madrugadas ou dos drinks. Sempre tão inteira no palco, tão respeitosa com a disciplina que o teatro exige. E com a vida também. Muita vida.

Depois veio ele. O amor da tua vida. O homem que te escolheu e a quem você também escolheu, numa dessas alianças que parecem fora do tempo, imunes à banalidade dos dias. E, de repente – assim mesmo, de repente – ele te foi arrancado. Como se a história tivesse tropeçado sobre vocês, como se um erro de cálculo do destino te deixasse suspensa nesse vazio.

Penso, querida, no que Freud dizia. E, perdão por trazer uma referência aqui, mas nos últimos anos a psicanálise tem tomado a minha vida. E aprendi com ele que o luto não é apenas a ausência do outro. É a lenta e dolorosa tarefa de desfazer os investimentos de amor e desejo que fizemos nessa pessoa. Desfazer não para esquecê-la, mas para que a vida volte a pulsar em nós. Desfazer sabendo que o amor não se apaga, mas muda de forma.

E é aqui, talvez, que sua dor seja mais dura de suportar. Porque quem ama como você amou, com essa integridade quase feroz, não se despede facilmente. Porque cada fibra tua estava nele – e não há disciplina que ensine a soltar. O luto é, por isso, um trabalho. Silencioso, ingrato às vezes, mas necessário para que a gente não confunda a ausência do outro com a própria ausência.

Escrevo também para dizer que ele não te foi roubado por completo. Ainda que te faltem os gestos, o calor do corpo, o timbre da voz, ele permanece em você de outro modo. Presente na memória, no jeito como você aprendeu a amar, nos gestos pequenos que ainda repete sem perceber.

E eu choro aqui. Não por ele, que partiu sereno, sem sofrimento prolongado. Talvez até protegido de maiores dores. Mas por você. Por essa travessia que só você pode fazer, e que, no entanto, a todos nós afeta. Porque ver quem amamos em luto nos faz lembrar que todos somos frágeis e que amar é também se arriscar a perder.

Desejo que você chore quando precisar, silencie quando quiser, e que, aos poucos, sem pressa, consiga reorganizar tua vida sem que isso pareça uma traição a ele. Que não confunda a necessidade de viver com uma falta de amor. O amor permanece. Mas, aos poucos, vai se acomodando em outros cantos da gente. Para que a gente possa respirar outra vez.

E, quando a dor pesar demais, permita-se também o silêncio. Ou os espaços vazios. Às vezes é ali, no que não se diz, que o amor encontra um jeito de continuar.

Com carinho e lágrimas que também são tuas,

Ivam.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1901

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