HISTÓRIA | Uma mesinha na calçada

Os primeiros anos deste século eram de outra matéria. O tempo parecia correr em outra frequência, e a Praça Roosevelt, bem no coração de São Paulo, era um território de risco. Dominada pelo tráfico e pela prostituição, pulsava como um coração ferido. Foi ali que Os Satyros aterraram, em dezembro de 2000, trazendo consigo uma fé improvável. A de que o teatro poderia devolver dignidade a um pedaço esquecido da cidade.

Eu e Rodolfo tínhamos trinta e tantos anos e corações abarrotados de sonhos. Chegamos com o desejo de transformar aquele espaço. E, certamente, no fundo, de sermos também transformados por ele. Não tínhamos grandes recursos, mas tínhamos umas mesas e algumas cadeiras. Sim, simples mesinhas colocadas na calçada foram o gesto fundador de tudo. Tenho repetido muitas vezes que foi ali que a nossa história se bifurcou. Umas mesinhas, de tão banais, tornaram-se sagradas. Eram um convite à interlocução, uma oferenda pública de convivência. As cadeiras vazias diziam: sentem-se, conversem, pertençam.

E um dia, uma mulher extraordinária se aproximou. Era Phedra de Córdoba. Travesti, cubana, idosa, exuberante. Sentou-se e nunca mais saiu dali. A partir dela, um mundo inteiro se abriu. Vieram os meninos e meninas do tráfico, os corpos marginalizados pela cidade, as vidas que a noite tornava invisíveis. A imprensa e o público nos olhavam como se fôssemos extraterrestres. E, de certa forma, éramos mesmo. Estávamos propondo outra forma de habitar o mundo.

Phedra se tornaria, até sua morte em 2016, uma das vozes mais luminosas da nossa trajetória. No palco, incendiava a cena; fora dele, era uma espécie de oráculo, lembrando-nos de que liberdade é uma palavra que precisa ser exposta todos os dias. Porque, fora do microcosmo que criamos nos Espaços dos Satyros – e chegamos a ter dois, o Um e o Dois –, a vida era cruel. As travestis e transexuais viviam tempos de puro desespero. Se hoje ainda é difícil, imagine há mais de vinte anos.

Mas dentro do Satyros, outra história era possível. Nossa utopia ganhava corpo, som, cor. E sabíamos: estávamos fazendo história. O gesto era político e poético. No contexto teatral de São Paulo, nossos espaços eram anomalias. Pequenos, precários, mas intensamente vivos. Até então, era impensável que teatros assim, minúsculos e desobedientes, pudessem ser reconhecidos como parte legítima da produção oficial.

Quando o Sesc inaugurou as salas multiusos de sua unidade Paulista, algo começou a mudar. Havia ali uma legitimação silenciosa, o reconhecimento de que era possível produzir teatro fora dos moldes tradicionais. Os Satyros, com suas salas modestas, haviam aberto caminho.

Naquela época, as políticas públicas eram rarefeitas. O Programa de Fomento ao Teatro era praticamente o único mecanismo de sustentação. Foi nesse terreno instável que nasceu a SP Escola de Teatro. Um projeto que queria legitimar novas formas de criação e de existência. A ideia surgiu de José Serra, então prefeito da cidade. E é curioso lembrar que ele próprio fora ator, dirigido por Zé Celso nos anos 1960. Serra enxergou o que muitos não viam. Que ali, na Roosevelt, havia um futuro possível.

E tinha razão. Muitos dos meninos e meninas que perambulavam pela praça se tornaram artistas, técnicos, criadores. O Satyros não apenas ocupava um território. Gerava mundos.

Em 2006, a praça já era outra. Viva, diversa, pulsante. Foi nesse ambiente que começamos a reunir parceiros para o projeto da Escola. E é importante dizer: não foi uma aventura de amigos. O núcleo fundador da SP Escola de Teatro foi composto pelos grandes profissionais que o teatro paulista podia oferecer naquele momento. Entre os que permanecem até hoje – Guilherme Bonfanti, Hugo Possolo, JC Serroni, Marici Salomão, Raul Barreto, Rodolfo García Vázquez e eu – e outros que marcaram profundamente o início da jornada – Alberto Guzik, Beatriz Gonçalves, Claudia Vasconcelos, Cléo De Páris, Raul Teixeira, Sergio Roveri e Vera de Sá –, formou-se uma constelação de talentos que, em conjunto, desenhou um novo modo de pensar a formação artística.

Nada foi simples. Nada foi tranquilo. Mas foi verdadeiro. E, talvez, seja disso que é feita a história. De mesas pequenas, gestos radicais e gente que acredita que um teatro pode, sim, transformar o mundo.

O resto – as tensões, as batalhas, as noites insones – fica para uma próxima vez. Porque certas histórias, quando nascem do amor e da resistência, não se encerram. Apenas continuam, na esquina iluminada de alguma praça, em algum lugar perdido no nada.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1938

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