Com programação intensa e sob o comando de Os Satyros, o importante cinema volta a ser uma referência cultural da cidade
Vicente Vilardaga
SÃO PAULO
O Cine Bijou, histórica sala de exibição na praça Roosevelt, no centro de São Paulo, escapou por pouco de se tornar uma igreja pentecostal ou uma casa noturna e voltou a ser uma referência cultural da cidade. Depois de 26 anos fechado, renasceu em janeiro do ano passado sob o comando da companhia de teatro Os Satyros, que assumiu a gestão do espaço e retomou o vigor dos velhos tempos.
Com uma curadoria que honra uma tradição de qualidade e privilegia a produção nacional, o novo Bijou se abriu para o debate político e para a discussão de pautas identitárias. “Queremos um lugar para discutir o cinema nacional, um lugar de acolhimento para o esquisito, para o diferente”, diz o dramaturgo Ivam Cabral, que dirige Os Satyros com Rodolfo García Vázquez.
A sobrevivência da sala que ajudou a treinar o olhar de várias gerações de cinéfilos é motivo de comemoração. É agora também a razão para a publicação de um livro sobre essa história, “Memórias do Cine Bijou”, do jornalista Marcio Aquiles, que sai pelo selo Lucias com edição da Associação dos Artistas Amigos da Praça, a Adaap.
Aquiles vasculhou os jornais do período histórico do cinema, entre sua inauguração em 1962 e seu encerramento, em 1996, e entrevistou dezenas de artistas, cineastas e jornalistas que frequentaram a sala.
Ele queria entender as razões do sucesso do Bijou e verificou que, além de projetar filmes incríveis, o espaço foi um ambiente de resistência contra a ditadura.
Foi um espaço de contracultura, onde se viam filmes autorais e se discutia cinema exaustivamente. Era também, como volta a ser hoje, um lugar charmoso e aconchegante. “Embora tivesse seu alvará, o lugar sempre teve esse espírito de contracultura, um aspecto de clandestinidade”, diz Aquiles. “Mesmo no auge da ditadura, ele estava exibindo obras críticas e de forte cunho político.”
De 1962 a 1996, mais ou menos 600 filmes foram projetados no Bijou, segundo a pesquisa do autor. Ingmar Bergman, Luis Buñuel e Woody Allen foram os cineastas mais frequentes, o primeiro com 15 e os outros dois com dez títulos. Pier Paolo Pasolini e Federico Fellini com nove e Akira Kurosawa e Roman Polanski com oito. Mas o Brasil ficava de fora —representava menos de 5% dos filmes projetados.
Aquiles pouco pôde apurar sobre as sessões secretas de filmes proibidos pela ditadura que passavam no Bijou. Por serem eventos clandestinos, os nomes desses filmes não foram divulgados na imprensa.
Um deles, porém, é lembrado por Ivam Cabral, que recebeu a informação do próprio Francisco Coelho, empresário que ficou à frente do cinema por 27 anos, morto em janeiro deste ano. Era “Eu Vos Saúdo Maria”, de Jean-Luc Godard, último filme censurado no país, em 1985, no governo José Sarney.
Outra característica transgressora do Bijou era não cobrar a carteira de identidade de seus frequentadores. De um modo geral, antes da abertura, filmes de arte e dramas complexos que os censores não entendiam eram proibidos para menores de 18 anos.
O primeiro proprietário do Bijou foi o produtor de cinema e comerciante argentino Jaime Schwarzman Rotbart, filho de imigrantes do leste europeu. Quando fundou o espaço em 1962, ele tinha outras salas na Boca do Lixo, no centro da cidade, mas queria um lugar elegante para atrair a elite intelectual da cidade.
Pensava em criar um “João Sebastião Bar do cinema”, bar musical da moda na época. No cartaz da inauguração do espaço, o tom foi enfático —”dando a São Paulo o que São Paulo ainda não tem”, “um ambiente seleto, luxuoso e confortável”.
O filme que inaugurou o Bijou foi a “A Lenda do Amor”, do tcheco Vaclav Krska. Para as semanas seguintes, eram anunciados títulos de Jerzy Kawalerovicz e Sergei Eisenstein, de “O Encouraçado Potenkim“. O empresário, que tinha negócios no Brasil e em Cuba, viajava com frequência para a Europa e trazia muitos filmes na bagagem.
Em 1969, ele vendeu a sala ao empresário Francisco Coelho, mantendo uma seleção de filmes impecável. Ex-lanterninha, Coelho teve vários cinemas e também mostrou ter um gosto apurado e grande capacidade para selecionar os longas para seu público.
Ele foi dono do imóvel até sua morte. E a negociação de locação com Os Satyros foi feita diretamente por ele, que tinha propostas de uma igreja e de uma casa noturna. “Na verdade quem alugou o Bijou foi o próprio Francisco. E ele só alugou quando teve certeza de que o espaço não seria explorado com outra coisa que não fosse cinema”, diz Cabral.
Cabral tem uma memória afetiva do cinema por ter frequentado a sala quando chegou a São Paulo, em 1989, vindo do Paraná. Foi no Bijou que ele assistiu a Bergman e Pasolini pela primeira vez. “O ingresso era barato e eu podia pagar. Durante a madrugada se pagava só um ingresso para assistir vários filmes.”
A preservação do Bijou envolveu uma grande mobilização de artistas e simpatizantes da causa. Em 2019, temendo que o espaço tivesse sua função desvirtuada, Cabral e Vásquez fizeram uma proposta de locação para Coelho.
“Em 2019 o espaço estava para alugar, podia ser qualquer coisa e a gente não sabia se conseguiria se impor como cinema”, diz Cabral. “Mas houve todo um trabalho coletivo, uma corrente que aconteceu a partir desse acordo.”
Houve uma campanha virtual de financiamento para reforma e modernização dos equipamentos e a primeira vaquinha para salvar o cinema foi puxada pela atriz Patrícia Pillar. Por isso hoje ela batiza a sala Bijou, com 77 lugares.
As confortáveis cadeiras são originais, dos tempos da inauguração nos anos 1960. A projeção é muito custosa —foram gastos mais de R$ 500 mil para a compra do equipamento e para deixar a sala adequada. “Quando veio a pandemia, Francisco deixou de cobrar os aluguéis, o que garantiu nossa sobrevivência”, diz.
O Bijou é apoiado hoje, por exemplo, pela Associação Paulista de Cineastas, a Apaci, que tem promovido projeções periódicas na sala, como a de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos, em maio.
A Pandora Filmes também tem ajudado a sala com clássicos, como “Cidadão Kane”, de Orson Welles, acompanhada de um longo debate. A busca de apoio, porém, é permanente e o cinema procura aumentar o financiamento coletivo.
“Começamos a ver os mesmos frequentadores, gente que vai lá direto, como num cineclube”, conta Cabral. “Não é anormal acontecer um debate depois de alguma sessão de maneira absolutamente espontânea. Sem que a gente tenha organizado os espectadores vão conversar.”
O Bijou tem se mantido ativo também por meio de projetos constantes tais como o Teatro na Telona, a Semana da Identidade Negra no Cinema Brasileiro, e a Mostra de Cinema Indígena. Hoje, semanalmente o cinema das periferias passa na tela do Bijou, assim como pequenas produções que buscam visibilidade e filmes independentes que colocam as minorias na produção e no mercado.
Fonte: Folha de S.Paulo