CRÍTICA | Em “A arte de encarar o medo”, Os Satyros inauguram o Teatro Digital no Brasil

por Dionisio Neto

Com o fechamento dos teatros e a sua abertura imprevista, provavelmente somente após a existência da vacina contra o coronavírus, os artistas de teatro estão quebrando a cabeça para unir sua arte dos palcos com a tecnologia e o audiovisual. Um novo desdobramento do teatro está surgindo – o Teatro Digital.

Não que ele venha a substituir o teatro feito há séculos no palco italiano, mas provavelmente este seja um forte indício de que daqui prá frente andarão de mãos dadas. Vídeos frequentam os palcos há décadas. Em “Opus profundum”, peça que escrevi e dirigi nos anos 1990, nós utilizamos o vídeo como personagem. Nem de longe é uma novidade. Em “Antiga” eu também utilizei. Mas agora, mesmo que o teatro seja o cerne e a raiz da questão, é inegável que o produto final seja a tela. E como sabemos, o teatro não precisa de câmeras nem telas. A câmera em 3D é operada pelos olhos de cada espectador e neste novo formato a presença de um diretor de fotografia é imprescindível, visto que o produto final é audiovisual.

Tudo é novo, e o “ao vivo” nos aproxima, como um eterno-retorno em aspiral, dos primórdios da televisão que também era feita ao vivo. Neste caso, como avisou Ivam Cabral antes do início da apresentação, a internet poderia até cair, visto que muitos dos atores estavam em zona rural com internet precária. Neste caso, a internet que caiu foi a minha, por alguns minutos, mas nada que estragasse do extremo e fascinante prazer de assistir esta obra que já entra para a história do Teatro Brasileiro como inaugural.

Muitas tentativas de adaptar o teatro ao digital estão em curso pelo mundo, a maioria caseira demais. Como disse, ainda que seja teatro, trata-se de um produto audiovisual e neste caso a fotografia, o som, e todos os recursos técnicos que pertencem ao cinema e a tv não podem ser ignorados. E na maioria dos espetáculos que assisti, isto é deixado em segundo plano, caracterizando o amadorismo das apresentações, jamais pelo conteúdo e muito menos pelas interpretações, mas pelo uso da estética digital em si. Fato totalmente perdoável, visto que o Teatro Digital ainda é um recém nascido.

Assisti no meu quarto, deitado na minha cama. Aproximei-me de um sonho, um poema do apocalipse. Dirigida por Rodolfo García Vázquez, que assina o roteiro ao lado de Ivam Cabral, a montagem se passa em um futuro distópico, quando a humanidade tenta reconstruir histórias de uma vida anterior à pandemia. Isolados há 5.555 dias, alguns amigos tentam se conectar à internet para retomar suas relações. Os personagens tentam comunicar suas angústias e seus medos. Imagens surreais, como a dos atores engravatados embaixo do chuveiro e tantas outras, como um vídeo-clipe, invadiam a tela do meu celular, despertando em mim uma imediata identificação e compaixão. Estamos todos no mesmo barco neste momento de dilúvio que a humanidade passa. Chorei, ri, lembrei da minha infância com a trilha sonora, não queria parar de ver.

No começo, os anfitriões nos convidam a escrever, em um ato de interatividade, nossos medos. Algumas frases seriam utilizadas no espetáculo. E no final, um bate-papo coletivo nos convidou a trocar impressões sobre. O Zoom, plataforma pela qual a peça se passa permite alguns recursos, como o da escrita. Ainda é nova e vai evoluir muito e rapidamente, gerando novos recursos de edição e interação. Para comprar o ingresso é preciso entrar no Sympla. Enfim, os aplicativos e o teatro estão de fato se unindo, cada vez mais.

Cada ator tem seu momento de brilho. O elenco é coeso e está entregue. A cena da mãe com a filha criança no banheiro é um primor de poesia. E até a desquitadinha do Brasil é invocada. Não há como não ver o mal, ainda que Os Satyros estejam dançando poesia bruta.

As apresentações do Teatro Digital muito ainda evoluirão, sobretudo do ponto de vista técnico. Diretores de cinema logo começarão a criar seus espetáculos para estas novas plataformas. Certamente muita obra boa surgirá neste híbrido de teatro, cinema e vídeo.

É teatro? Sim e não.

Nada substituirá a emoção de estar frente a frente ao vivo com os atores em carne e osso vivendo aqueles momentos únicos e mágicos.

Mas como o teatro é o espelho de seu tempo, o digital é a ponte que nos une a todos para celebrar os novos ritos do apocalipse que troveja em suas trombetas do fim.

E neste caso, do admirável início de um mundo que rezo para que seja, além de novo, belo, justo e bom.

 

 DESCRIÇÃO DO EVENTO

página do evento – https://www.sympla.com.br/estreia—a-arte-de-encarar-o-medo—satyros-digital__870976

Em um futuro distópico, pessoas tentam reconstruir histórias de uma vida anterior à pandemia. Em quarentena há 5.555 dias, isolados e angustiados, criaram um grupo na internet para se conectar. Esses amigos não entendem como ainda existe energia elétrica nem acesso à web, porque as emissoras de televisão e os jornais deixaram de existir e as cidades foram abandonadas. A depressão, a solidão, o medo do contágio, a angústia pela proximidade da morte e o desespero diante dos ataques diários contra a democracia brasileira perpassam as cenas do espetáculo.

 

FICHA TÉCNICA

Roteiro: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Elenco: Ivam Cabral, Eduardo Chagas, Nicole Puzzi, Ulrika Malmgren, Diego Ribeiro, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Marcelo Thomaz, Marcia Dailyn, Mariana França, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo
Ator convidado: César Siqueira
Atores mirins convidados: Nina Denobile Rodrigues e Pedro Lucas Alonso
Orientação visual: Adriana Vaz e Rogério Romualdo
Fotos: Andre Stefano
Produção: Os Satyros

 

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
+ Para assistir ao espetáculo três coisas são imprescindíveis:
1) baixar o aplicativo Zoom https://zoom.us
2) fazer um cadastro e logar no site https://www.sympla.com.br

3) acessar a área Meus ingressos e clicar em ACESSAR TRANSMISSÃO (disponível 15 minutos antes do horário de início do evento)

Fonte: Dionisio Neto Word Press

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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