Edifício London por Jean-Jacques Mutin

Teatro e Realidade: Edifício London, no Teatro do Satyros, São Paulo

O Teatro, até mesmo quando fala da realidade mais sórdida, não é essa realidade: no momento em que pisamos no palco, neste espaço-tempo ritualizado, já estamos na ficção. Essa é a magia da relação teatral: “ficcionalizar” de imediato o corpo-falante do ator.

O Teatro não é a imitação da real, mas sim a re-presentação, a trans-posição dela, isto é a metaforização, a poetização desta realidade, no sentido artaudiano da Poiésis como espaço-tempo da criação.

Ele é o lugar da deslocalização, como o sonho pode ser  para o nosso cotidiano: as imagens do sonho, as personagens que ele coloca em jogo, são para ser decifradas. O sonho traz uma realidade às vezes mais real do que a verdadeira realidade, mas que não é forçosamente parecida com ela. Ele faz uma referência a esta realidade. No entanto, falando somente de si. Cabe a cada um de nós colar nele as imagens que lhe pertencem e constituem a sua própria mitologia.

Então, o espaço da cena teatral, metáfora da outra cena, a do Inconsciente, não tem que se limitar a  uma realidade ilustrativa da história contada. A única realidade que existe é a do “aqui e agora” da apresentação: um espaço, um/alguns ator/es mergulhando na emoção da  situação e das falas. Entre o fato real referenciado e a imagem dele proposta no palco há um filtro: o do olhar;  ou melhor, do imaginário, do Sujeito criador (autor, diretor, atores) que interpreta/reinterpreta essa realidade,impondo, de fato, um distanciamento.

Mas a matéria mesmo do teatro, o seu húmus, é a realidade, quer dizer a do momento histórico da sociedade  onde ele se faz.

A Tragédia grega nasceu no século  5 antes da  era cristã (antes, o “Teatro” não existia, mas somente  rituais religiosos) no momento em que a Cidade (a Pólis grega se elaborando) precisava, para existir como entidade social nova e divulgar a  Doxa, dar exemplos de convivência grupal. Essa foi a primeira missão do teatro: formar cidadãos, quer dizer trans-formar  um povo inculto, primário, primitivo, nômade, em um grupo de seres humanos civilizados..  Os grandes autores trágicos usaram os antigos mitos como fonte de exemplaridade para inculcar ao povo o respeito dos valores definindo o SER humano e as regras de vida em sociedade.

Se não havia um mito suficientemente forte para veicular esses valores contemporâneos, o autor aproveitava os acontecimentos da época para que, uma vez fantasiados pelo trabalho poético da escrita, eles servissem de modelo.

Historicamente, portanto, o teatro sempre teve essa função: retratar o movimento das sociedades, pensar para mudar. Não é só ser um espelho, mas uma plataforma de  ideias para questionar o que está acontecendo, captar os signos de mudança nas relações entre os seres humanos, propor  uma reflexão sobre o que é “ser/não ser HUMANO”?

O teatro elisabetano (talvez estejamos num momento histórico muito parecido com aquela época!) foi um teatro que comovia, sacudia,  espantava e maravilhava o público porque era uma crônica histórica, uma crônica da atualidade. Ele se alimentava de crimes, de história, de observação brutal da vida. Tudo era novo, tudo se prestava à adaptação.

A tragédia desapareceu como gênero teatral, mas sobreviveu em nossas vidas cotidianas. Assim não há nada de estranho nem condenável no fato de se ver um autor de hoje apropriar-se  de um fato real, atual, de barbárie, um infanticídio, para tentar entender o inaceitável.

Quando se trata de um fato como o caso bem conhecido da morte de Isabella Nardoni (assistimos todos à versão jornalística, muito mediatizada, do caso), imediatamente levantam-se várias perguntas humanas, sociais e filosóficas que tornam-se estéticas no quadro de um projeto de adaptação teatral. Mais do que a selvageria do crime em si foi a ausência aparente de motivo, concreto e pessoal, que causou tamanha repercussão social.

O projeto teatral, que, além do título, não se refere explicitamente àquele caso (os personagens não têm nome e funcionam como figuras), trata mais de interrogar-se sobre a violência do ser humano, que pode entregar-se a atos bárbaros sem nenhuma razão aparente, e a comentar sobre esta violência: expressaram-se muitos e muito sobre este crime como se a barbárie pura e dura não podia/não devesse ficar sem explicação e sem punição. O que não podemos “saber”, temos que inventá-lo, transformá-lo até ele virar exemplo para o universo, particularmente quando ele toca as raízes do Humano em cada um de nós.

“Edifício London”é, antes de tudo, um gesto artístico de re-criação de uma realidade, portanto de afastamento dela, e as  perguntas só podem ser UNICAMENTE estéticas :

– Como estabelecer uma ponte entre a realidade e a ficção teatral?

– Como operar uma transformação? Transformação da realidade em direção ao fictício pelo viés da repetição?  Usando um fato real e decidindo  transpô-lo para o palco, já existe aí um movimento de repetição: repetir não significa “reproduzir exatamente”. Uma vez que o ato básico foi produzido (o infanticídio), não existe mais possibilidade de reproduzi-lo; existem somente possibilidades de variações interpretativas que trarão algo diferente dele; a repetição de um ato real, com o objetivo de transformá-lo artisticamente, já é transformação do ato inicial.

O perigo, quando se trata de um fato social referindo-se à barbárie, seria não conseguir ultrapassar a transfiguração, quer dizer não propor outra coisa que um esqueleto da realidade, mostrar somente a violência, uma simples reconstituição dos fatos sem relevância nem novidade.

Existe um despojo da realidade pelo simples fato da repetição: aos poucos chega-se à essência do ato, portanto, ao trágico. E a essência do trágico, ela é universal porque transcende a temporalidade: ela remete a épocas passadas (cf. Medeia) ou futuras.

De qualquer forma, incentivar a arte é, antes de tudo, respeitar a liberdade do artista nas suas  fontes de inspiração,  a  visão do mundo que ele está propondo, até mesmo quando ela é insuportável: isso é o direito de qualquer um de nós à Liberdade de Expressão, que define habitualmente a Democracia.

Um autor não pode ser culpado por ter se apoiado na realidade dos seus contemporâneos para criar uma obra artística; caso contrário, quantas peças, de Esquilo, de Euripides, de Shakespeare, de Molière, de Brecht, de Genet, de Koltès … nunca teríamos visto!

A moral, a justiça, não têm nada a ver com um processo criativo: o Bem e o Mal são categorias que não podem/não devem existir no julgamento estético a menos que  estejamos vivendo num estado totalitário que  tema tudo o que poderia perturbá-lo.

* Jean-Jacques Mutin é diretor e professor de estética teatral da Aix-Marseille Université (França)

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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