E TEREMOS SALVAÇÃO?

Detalhe do quadro "O Grito" (1893), de Edvard Munch.

– Alô?

– Alô.

– Por favor, quem fala é Ivam Cabral, dos Satyros.

– Meu querido. Eu queria mesmo te pedir desculpas.

– Desculpas?

– Pelo convite que eu não pude aceitar.

– Imagina, entendi perfeitamente.

– Quando li nos jornais, fiquei com uma dor imensa. Pensei, eu deveria ter ido.

– Sim, o evento foi lindo e você fez falta.

– Sabe o que é? É algo de caráter muito pessoal, mas eu… (Um pequeno e perturbador silêncio) Eu tenho depressão, sabe?

– Entendo perfeitamente. Também eu.

– (Surpresa, quase feliz) Sério?

– Sim e já faz um tempo. E é um problemão. Cada vez mais tenho sentido vontade de ficar sozinho.  E ultimamente, começo a ter problemas em falar em público.

– Não acredito. Eu também. Tenho recusado conferências, não tenho respondido a entrevistas. Imagina você que até meus alunos na pós-graduação me deixam amedrontada. (Risos nervosos) Nossa, quem diria…

– Você é de câncer?

– Não, de aquário.

– Engraçado, pensei que fosse coisa de cancerianos.

– Jamais poderia supor que você também sofresse disso. Um ator como você!

– Pra completar, sou muito tímido.

– Mesmo? E você sempre foi assim?

– Desde que me entendo por gente.

– Não podia mesmo imaginar.

– Então eu, como podia supor que você, uma intelectual brilhante, dona de uma obra admirável, pudesse estar…

– (Cortante) Doente. (Pequeno silêncio) Então me perdoe. Quando li a matéria no jornal tive vontade de estar lá com vocês.

– Você toma algum medicamento?

– Sim, estou experimentando agora o cloridato de fluoxetina.

– Prozac? Já experimentei.

– (Mais risos nervosos) Prefiro chamar de fluoxetina, é menos pesado.

– Você já leu o livro “O Fantasma do Meio-Dia”?

– Não, não li.

– É uma obra fantástica do Andrew Solomon, um autor americano, que foi às profundezas para vencer a sua depressão. Ele faz um recorte minucioso e uma investigação ampla sobre a depressão. Você precisa conhecer o livro.

– Interessante, quero ler o livro. Como se chama mesmo?

– “O Demônio do Meio-Dia”. Oxalá o livro seja pra você tão valioso quanto tem sido pra mim. Eu ainda não terminei de ler.

– E você faz terapia?

– Há anos. E você, faz?

– Voltei agora. Estou experimentando a lacaniana. (Pequena pausa) E teremos salvação?

– Acredito no ser humano e em sua recuperação. Sempre.

– Será mesmo?

– Com certeza. O Andrew Solomon fala do papel vital da vontade e do amor no processo de recuperação da depressão. Para ele, examinar a depressão e as emoções que a rodeiam é examinar o que é possuir um eu.

– Mas isso já sabemos.

– Mas eu ainda acho que a gente se ama pouco e o problema são os afetos.

– Como assim?

– Precisamos trabalhar os afetos, corrigir a autoestima. Você, por exemplo, como disse, uma intelectual brilhante.

–E você, um ator que eu admiro. (Silêncio profundo) E a gente não se conhece pessoalmente.

– É, não se conhece.

– Desculpe, e você me ligou por quê?

– Pra dizer que acabei de ler o seu artigo hoje e que ele me salvou.

– (Rindo) Eu te salvei?

– Sim, eu estava muito triste e você me elevou. Então, queria te agradecer.

– Não há de quê, querido.

– E obrigado pela conversa.

– Eu é que adorei falar com você. Quando tomamos um chá juntos?

– Seria um prazer.

– Pode ser no fim de semana?

– Domingo é bom pra mim.

– Pra mim é perfeito. Você me liga no sábado pra combinarmos?

– Ok, até sábado então.

– Até. Foi mesmo um prazer. Mas… (Rindo) Em que horário se encontra mesmo o demônio?

– Ao meio-dia.

– Vou me encontrar com este demônio.

– Até, então.

– Até .

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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