Hoje conheci um pouco mais do amor. Eu o descobri na penumbra, no intervalo entre um gesto e outro, no silêncio onde ele se esconde. Sei mais agora – não tudo, nunca tudo – sobre esse amor que não pede licença nem explicação, que se entranha no cuidado e já nasce com a dignidade de uma despedida. Um amor que não grita, mas vigia. Que não se exibe, mas sustenta. E que, justamente por isso, dura.
Almoçamos juntos hoje. Digo “juntos”, mas a rigor é injusto. Zizi está sempre alguns passos adiante, como quem já atravessou uma ponte que eu mal começo a avistar. Sessenta e tantos anos, pele negra, uma inteligência temperada em Paris, mas forjada muito antes, no calor da sobrevivência. Nos últimos anos, nos tornamos amigos. Amigos mesmo — essa categoria que não se mede nem em abraços nem em fotos, mas no silêncio que se consegue dividir sem medo.
Hoje falávamos sobre amor. E, de tudo o que se pode dizer sobre o amor, ela escolheu a frase mais improvável e mais exata: “Os negros sabem amar como ninguém.” Disse isso sem orgulho altivo nem timidez, apenas como quem devolve ao mundo uma verdade que lhe foi roubada. “Sabem amar e sabem cuidar.” Depois, com um sorriso que mais parecia uma advertência, acrescentou: “Têm dificuldade de demonstrar afetos em público.” E, por fim, completou: “É a ancestralidade que ensina: você precisa aprender a se despedir de seus amores com alguma facilidade.”
Ouvi aquilo como quem escuta uma sentença proferida para os dois hemisférios do coração. Pensei nas mulheres negras que conheci, em como sabiam manejar uma ternura quase invisível, um carinho que às vezes se confundia com rigor, mas que era, no fundo, só medo de perder. Perder o filho, perder o marido, perder o próprio corpo para a história que insiste em arrancá-lo delas. Não é que o amor não esteja lá. É que ele vem já embrulhado para a despedida.
E ela explicou: “por isso é tão comum a maternidade solo. Porque elas já nascem preparadas para o abandono. Não só para suportá-lo, mas para não deixar que ele devaste os filhos. Porque no cuidado delas, quando há amor – e há, sempre há – a relação se torna sólida e eterna. Nada as separa de seus filhos. Nem a falta de um homem, nem a pobreza, nem a morte.”
Falamos, então, sobre essa maternagem das mulheres negras, única e mais intensa que qualquer outra. Um amor que é também desespero, também medo. Um laço tecido à mão, entre lágrimas escondidas e risos postiços, porque o corpo negro não pode se dar ao luxo de ser frágil diante de ninguém. É um amor que se defende para continuar amando.
Fiquei pensando – e só agora ouso confessar – que talvez o maior gesto de amor que essas mulheres nos oferecem seja exatamente essa contenção. Esse pudor em exibir a ternura como espetáculo. Para elas, amar é um verbo em voz baixa. É no cuidado, no feijão no fogo, na roupa estendida, no olhar que vigia a madrugada inteira. É um amor que já nasce com um nó na garganta e que, ainda assim, segue.
Ao final do almoço, ela me olhou com alguma ironia, como se soubesse de todas as perguntas que eu não conseguiria fazer. E disse: “o corpo negro não pode se distrair. Tem que amar e vigiar ao mesmo tempo”.
E eu, tolo, me peguei pensando na poesia desse amor, como se a poesia fosse suficiente para explicar o que ela já havia transformado em carne e gesto. Saímos do restaurante e eu lhe ofereci meu braço, em um desses atos cavalheirescos que aprendemos nos livros – e que sempre soam um pouco ridículos diante de alguém que já nasceu sabendo carregar o mundo. Ela aceitou, e seguimos conversando sobre o efeito do amor no mundo contemporâneo, como se ainda houvesse tempo para entendê-lo.
Quando cruzamos com um casal negro descendo a rua, ela apontou, quase em confidência: “viu? eles não demonstram afetos”. Eu quis saber mais, incapaz de me contentar com a sentença. Ela olhou para mim com paciência e disse apenas: “o amor não suporta a separação”.
E seguimos andando, com essa frase entre nós, latejando como um segredo que só se revela no silêncio dos corpos que aprendem a amar apesar de tudo.
Que texto incrível, impossível ler e não deixar as lágrimas escorrerem, faltam palavras e nem precisa.
Obrigado
Texto incrível sobre Isildinha, sobre Ivam e sobre o amor! Gratidão
Que texto! As lágrimas encharcam meu olhar, mas não conseguem cair. Obrigada Isildinha, obrigada Ivan pelo cuidado.