TAB/UOL | ‘Diluído em nós’: atores falam do corpo na obra, vida e morte de Zé Celso

Os versos de Pixinguinha em “Carinhoso” soavam numa declaração de amor cantada por homens e mulheres amontoados e abraçados no centro da passarela do Teatro Oficina, em São Paulo, na noite da última quinta-feira (6). “Vem matar essa paixão que me devora o coração / e só assim, então, serei feliz, bem feliz”, repetiam, em coro choroso.

Durante dois dias, aqueles artistas viveram a tensão em torno de uma tragédia. O diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa foi internado na unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas na terça-feira (5), após um incêndio em seu apartamento, no bairro do Paraíso, zona sul da cidade. Zé Celso teve mais da metade do corpo queimado pelo fogo, possivelmente causado por um aquecedor elétrico, que começou no quarto onde ele dormia e se espalhou por outros cômodos.

“Acordei com um estrondo. Abri a porta do meu quarto, estava tudo escuro, não sabia se era madrugada ou se tinha amanhecido. Era a fumaça. Aí comecei a ouvir o [ator] Victor Rosa falando: ‘Vem, meu amor. Vem’. Ele estava puxando o Zé, que estava com a mobilidade difícil. E eu vi o fogo atrás, no quarto”, lembra o ator Marcelo Drummond, viúvo de Zé Celso, que chegou a desmaiar por causa da inalação de fumaça.

“Um vizinho apareceu e trouxe o Zé com o Victor. Zé falava: ‘Abre a janela, abre a janela’. Eu dizia: ‘Já está aberta’. Segurei as duas mãos dele, e ele botou as pernas em cima de mim. Parecia que a gente tinha acabado de trepar. Uma coisa que a gente faz depois de trepar, quem trepa sabe. Aí os bombeiros chegaram, foi a última vez que a gente se viu.”.

Marcelo, Victor e o também ator Ricardo Bittencourt, que estava no apartamento, foram socorridos e receberam alta. Na quinta-feira pela manhã, Zé Celso morreu, aos 86 anos.

O Oficina abriu suas portas, dessa vez, para um espetáculo inesperado: um ritual de transmutação, como o próprio grupo o definiu, para velar o corpo de seu criador. O corpo que uma vez se movimentou vigorosamente naquele espaço agora repousaria inerte, cercado por tantos outros em movimento.

 

Corpo sagrado

No candomblé, onde os rituais sagrados ecoam em harmonia com os tambores, o “cavalo” emerge, transcendendo as fronteiras entre o terreno e a espiritualidade. É o divino quem “cavalga” o médium, e o corpo é o canal dessa transmutação.

No Oficina, onde o teatro do ritual uniu orixás e deuses gregos, o corpo sempre foi sagrado. “Depois que fui torturado, ficou ainda mais claro que o corpo é sagrado”, reforçou Zé, em entrevista ao TAB, em 2018. Ele se referia à prisão durante a ditadura militar, em 1974, quando foi detido no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), amarrado em um pau de arara e submetido a choques elétricos..

O diretor e seu Oficina romperam vertiginosamente com as convenções sociais e a moralidade e fizeram do corpo o grande terreiro da arte.

O primeiro nu frontal no Oficina foi em 1969, em “Na selva das cidades”, texto original de Bertolt Brecht. A cena, da atriz Ítala Nandi, se tornaria uma das marcas registradas da companhia. Para Zé Celso, o corpo é um templo poderoso, vetor de transformações não só artísticas: “Todo ser humano é Exu, todo ser humano é Jesus. Todo ser humano tem essa possibilidade de perceber a potência do corpo”, disse também ao TAB.

A nudez, porém, é apenas um dos tantos recursos da companhia como expressão de liberdade.

Em montagens como “O Banquete” e “Para dar um fim no juízo de Deus”, o Oficina levou suas experimentações com o corpo a extremos. Nessas peças, houve utilização de sangue, esperma e fezes, explorando os limites da representação e desafiando os padrões estabelecidos.

Antropofágico na essência, Zé Celso se apropriou da ideia do escritor Oswald de Andrade (1890-1954) de devorar, absorver e transformar. Característica que influenciou outros artistas e marcou a carreira de quem já foi dirigido por ele.

 

Erudito ou popular?

O ator, diretor e escritor Biagio Pecorelli, que integrou os elenco dos espetáculos “Macumba Antropófaga” e “Acordes” e pesquisou a performance do Oficina, define a obra de Zé Celso como uma “implosão das dicotomias modernas”.

“Não é possível dizer se é um erudito ou um popular. É sagrado e irremediavelmente profano, carnal. É político, sim, mas foi, em diversos momentos dessa longeva história, um terror para a cena política brasileira, acostumada a representar”, afirma. “Zé não representava, não havia bastidores naquele corpo. E a nudez é um reencontro com o que éramos antes das caravelas.”.

Para o cofundador da companhia Os Satyros, o dramaturgo Ivam Cabral, o Teatro Oficina está “nas entranhas” do seu trabalho. Conhecido pelo estilo anárquico e despudorado de fazer teatro, o grupo criado por Cabral e Rodolfo García Vázquez também se inspirou em Zé Celso.

“Quando conheci o Rodolfo, lá em 1989, foi o Zé quem nos aproximou. Estávamos, naquele momento, buscando o dionisíaco no teatro, que, em verdade, andava higiênico demais, apolíneo demais”, lembra. “Este foi o nosso primeiro elo construído juntos. E, a partir de então, um mundo de descobertas iria nos jogar em direção ao Teatro Oficina.”.

Em 2000, antes de inaugurar sua sede da praça Roosevelt, os Satyros ensaiaram a peça “O Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte” no Oficina. “Existimos porque Zé veio antes. Como sábio maior, ele disse, desde sempre: teatro existe para disfarçar o tempo ruim e alertar o tempo bom, que a vida é finita apenas nos teatrões onde a coxia disfarça a cena. Por isso os Satyros, como o Teatro Oficina, não disfarçam os bastidores. Estaremos sempre nus, de prontidão, dissimulados e prontos para o embate.”.

A cantora e atriz Karina Buhr se lembra do impacto ao mergulhar no universo do Oficina. Foi um convite de Zé Celso que a fez desembarcar em São Paulo em 2000. Foi do aeroporto, “de mala e cuia”, direto para os ensaios de “Bacantes”, peça escolhida a dedo por Zé Celso para ser encenada na virada do século.

Karina ficou no Oficina por sete anos e cinco peças, onde cantou, atuou, compôs. “Me virou do avesso, me influenciou completamente. Ninguém passa pelo Oficina sem ser remexido, mesmo que seja só assistindo. Eu fico procurando palavras, porque o dia de hoje é um dia muito louco pra falar disso. Passa um filme na cabeça”, disse ela na noite do velório, minutos antes de subir ao palco para um show.

“É o corpo em qualquer espaço que você estiver. A cena não é só no palco. É seu corpo atuando naquele momento, com as notícias do dia. O show que eu vou fazer daqui a pouco é com a morte de Zé junto. Tudo como uma coisa só. É o músico tocando o instrumento, é a cantora cantando, o ator atuando. É o corpo passando por tudo isso ao mesmo tempo. É você inteiro ali. Não é uma função só. É o corpo ligado a tudo que está acontecendo naquele momento. Essa é uma das grandes transformações que o Zé causa, que o Oficina causa.”.

 

‘Cavalo quer voar’

O Teatro Oficina se preparou ao longo da noite para receber o corpo de Zé Celso. Embalados por músicas e dança, gerações de artistas que trabalharam ali ao longo dessas seis décadas, celebraram o diretor. “Meu cavalo tá cansado, meu cavalo quer voar”, cantavam. “Atuar, atuar, atuar para poder voar.”

A atriz Nash Laila esteve com outros integrantes durante 24 horas de rito. Com o corpo exausto, já nesta sexta-feira (7), ela disse que aquele fora “o maior teatro que a gente já fez nesse teatro”.

“A gente cantou, dançou em homenagem à continuidade do Zé que está em nós. Esse corpo se transfigurou em divino, em entidade, a partir do fogo, nessa passagem fulminante de fogo e vida que ele nos ensinou por tanto tempo”, afirmou.

Nash, que há mais de uma década faz parte do Oficina, entende a companhia como um teatro feito sem combinar, sem falar, sem roteiro das coisas. “A gente entende a próxima cena com a ligação que a gente tem com os outros”, diz. “Essa ligação só se dá dessa maneira por causa do nosso estado presente, nosso corpo. Impossível pensar em atuação, no geral, sem pensar no corpo. A radicalidade da Oficina é a radicalidade do corpo.”

Passava das 23h quando a multidão de gente que lotou o Oficina ao longo da noite, chegando aos poucos desde às 19h, saiu para a rua Jaceguai, em frente ao teatro, para receber Zé Celso pela última vez. Como acontecia na grande festa de louvação a Dionísio, o deus grego, origem do teatro, a divindade daquele lugar chegaria num carro, aplaudido pelos seus amigos, colegas e admiradores.

Já dentro do espaço, o caixão de Zé foi envolto pelo elenco e familiares, num grande abraço. Era o início da despedida, que se estendeu até 11h30 de sexta-feira, quando seu caixão foi fechado e o corpo, cremado. “O corpo dele se foi, mas ele está diluído e estilhaçado como ator em cada um de nós”, resume Nash. “Corpo é concretude, e é dessa disponibilidade do corpo, do encontro, que a gente faz magia.”

 

Fonte: TAB Uol

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