DICA | A Revolução Silenciosa de Rosalía

Rosalía nasceu na Catalunha e vive em Barcelona. Menos de dez anos de carreira bastaram para que ela se tornasse uma das artistas mais influentes do seu tempo. O fenômeno não está apenas na voz ou na mistura de referências. Está na capacidade de reinventar a própria ideia de música. “Lux”, seu novo álbum, confirma isso.

O disco, lançado em novembro de 2025, foi gravado com a London Symphony Orchestra e soa como um projeto pensado nos mínimos detalhes. Rosalía afirmou publicamente que não usou inteligência artificial na criação das faixas. Essa decisão parece atravessar todo o trabalho. Há algo de profundamente deliberado em “Lux”: a escolha pela matéria humana, pelo erro possível, pelo gesto que não pode ser automatizado.

Essas escolhas também se refletiram nas audições de lançamento. Em algumas, o público precisava guardar o celular; em outras, a sala permanecia no escuro, sem estímulos externos. Era quase um pedido de suspensão: escutem o disco como quem escuta alguém falar – de verdade, sem distrações. Numa época em que nada mais dura do que alguns segundos de atenção, a contora catalã reivindicou minutos inteiros de presença.

Entre as colaborações do álbum, uma chama atenção: a de Carminho, na faixa “Memória”. Há algo de inesperado e, ao mesmo tempo, inevitável nessa parceria. A força do fado e a estética singular de Rosalía se encontram sem esforço, como duas línguas que sempre se reconheceram. “Memória” traduz bem o espírito do álbum: a busca por um sentimento que pode até ser moderno, mas nasce de uma escuta antiga.

Björk é outra das vozes-guarda-chuva desse novo mundo sonoro de Rosalía. A presença da cantora islandesa aparece de modo significativo em “Berghain”, primeiro single do disco, marcado por uma fusão orquestral, eletrônica e por três línguas – alemão, espanhol e inglês. A colaboração não funciona como simples feature, mas como um encontro de universos. Björk, símbolo de uma arte pop-experimental que rompe fronteiras, dialoga naturalmente com a estética que Rosalía delineia – onde tradição (como o flamenco) cruza tecnologia, espiritualidade e corpo. A escolha reverbera como um gesto de ambição artística. Convidar alguém como Björk é reafirmar que o álbum não se limita ao pop previsível, mas busca atravessar territórios inéditos.

Rosalía impressiona não apenas pela estética, mas pela postura. Enquanto tantas artistas se apoiam cada vez mais em ferramentas automáticas – o que não é um demérito – ela escolhe remar na direção contrária. Prefere o corpo, a respiração, a presença. Prefere a experiência integral a qualquer truque tecnológico. Não é um purismo antiquado. É uma posição ética e artística clara.

Talvez seja por isso que “Lux” não pareça apenas um álbum, mas um gesto. Um gesto de alguém que acredita que a música ainda pode convocar atenção, reflexão e presença. Que a criação não precisa, necessariamente, abrir mão do humano para alcançar grandeza. E que, às vezes, é justamente o contrário. É quando o humano retorna ao centro que a obra encontra o seu verdadeiro alcance.

Num mundo que acelera, Rosalía decidiu fazer o contrário. E, por isso mesmo, continua a revolucionar.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1972

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