Se você me encontrar com relógio e anel, saiba: naquele dia eu sou psicanalista. Não que, sem eles, eu deixe de ser. Mas eles, de alguma maneira, me lembram do ofício. No dia a dia, aliás, nunca usei relógio. Nunca. É como se meu pulso tivesse aprendido, desde menino, a respirar fora do tempo. E, mesmo assim, na clínica eu preciso dele. Um modo delicado, quase invisível, de conter os minutos dos meus pacientes. Não é tanto para mim – eu me perderia sem problemas –, mas para eles, que merecem um espaço com começo, meio e fim.
Se eu fosse lacaniano, isso não seria um problema. Diria que o tempo do inconsciente não se mede em minutos, mas em cortes. Que um segundo pode durar uma eternidade e uma hora caber inteira num suspiro. Poderia até dizer – com a convicção de um bom francês – que o inconsciente é estruturado como um relógio que nunca acerta as horas.
Mas não sou. Então, sem relógio, fico à mercê do tempo comum, esse que corre pelos ponteiros e pelas palavras, enquanto eu tento acompanhar, como quem corre atrás de um trem já em movimento. E sorrio sozinho ao imaginar que, talvez, meu pulso já saiba o que Lacan tentou explicar a vida inteira. No fundo, o tempo é só uma bela distração para quem não suporta o vazio.
O anel tem outra história. Não é só um enfeite, nem um hábito que se pega por vaidade. É herança de um encontro. Anos atrás, eu e o Contardo Calligaris esperávamos por uma reunião importante. Ele remexeu os bolsos, como quem busca um cigarro ou um lenço, e de lá saiu um anel. “Combina mais com você”, disse, sorrindo, estendendo-o para mim. Eu, que nunca havia usado anéis na vida, agradeci, meio sem jeito, e o coloquei no dedo. Depois, ficou esquecido por anos, sem função, apenas memória. Quando comecei a clinicar, não sei bem por que coloquei o anel no dedo. Não foi premeditado. Intuição, talvez. Ou uma dessas associações inconscientes que só depois a gente entende. Só sei que, sem perceber, ele passou a fazer parte do meu ritual.
O anel é de prata. Simples, mas bonito. Aliás, bem bonito. Um dia, entre encontros e cafés, perguntei ao Contardo de onde vinha aquele anel. Ele sorriu com aquele jeito dele, meio maroto, e confessou que tinha ganhado de uma namorada. Curioso, perguntei quem era. Ele soltou uma gargalhada, dessas que enchem a sala, e respondeu apenas: “Você está querendo saber demais.” E continuou rindo, como se a graça maior fosse justamente não dizer.
Hoje, porém, foi diferente. Saí de casa apressado e cheguei ao consultório sem relógio e sem anel. Só percebi ao me sentar na poltrona, diante da porta que se abre e fecha tantas vezes ao longo do dia. Estranhei o peso leve das mãos. O pulso nu, o dedo despido. E então me perguntei. Será que, sem relógio e anel, eu serei menos psicanalista?
Essa, talvez, seja a minha grande questão do dia. Talvez da vida.
Porque, no fundo, suspeito que esses pequenos rituais – um círculo de prata e um tic-tac contido – não me façam exatamente psicanalista. Mas são, de algum modo, lembranças visíveis de tudo o que me atravessa. O tempo, as histórias, os segredos que não são meus e que, ainda assim, carrego comigo.
E eu sigo. Com ou sem relógio, com ou sem anel. Escutando.