Tenho ouvido dizer que algumas vidas só encontram descanso quando regressam ao primeiro sopro. É, talvez seja mesmo isso. Porque certas existências, tão grandes, tão indomáveis, que precisam de um último gesto para fechar o círculo. Phedra de Córdoba foi uma dessas vidas. Gigante que atravessou continentes com o corpo fendido e ferido muitas vezes por preconceitos, mas com uma dignidade que nenhuma ferida conseguiu corroer.
Travesti, artista, cubana – e, sobretudo, sobrevivente – Phedra se inventou muitas vezes. Antes da transição, dançou pelos mares latino-americanos, iluminada pelas luzes artificiais dos cruzeiros, até que o destino a deixou no Rio de Janeiro com um prato de feijão fumegante entre as mãos. Ela repetia, com aquele humor que só as grandes almas dominam, que foi o feijão que a fez ficar. Afinal, o Brasil é um dos raros países latino-americanos onde o feijão pulsa diariamente na mesa do povo, tanto quanto em Cuba. Mal sabíamos que era também o feijão, alimento de raiz, gesto de casa, que lhe anunciava a promessa de uma terra onde, finalmente, poderia cultivar corpo, nome e futuro.
E foi no Brasil que Phedra se tornou Phedra inteira. Dos palcos de Carlos Machado ao altar profano do Marquês de Sade, na Praça Roosevelt, ela brilhou como se carregasse um holofote dentro do peito. Mas talvez tenha sido nos Satyros, entre 2002 e 2016, que encontrou o que buscara por toda a vida: respeito. Não fama, não aplausos. Isso ela sempre teve. Respeito. O reconhecimento que não se negocia, que não se barganha: aquele que diz você existe, e sua existência nos engrandece.
E assim ela seguiu, soberana, até 2016, quando partiu aos 77 anos. Deixou saudade, deixou histórias, deixou uma risada que atravessava a noite. Mas faltava algo. Sempre falta, quando alguém nasce longe demais do lugar onde, no fim de tudo, poderá descansar.
Na semana passada, algo finalmente se completou. Nosso espetáculo A Casa de Bernarda Alba subiu ao palco do imponente Teatro Nacional de Cuba, no Festival de Teatro de Havana. E Phedra viajou conosco. Em silêncio, mas presente. Em urna, mas viva. Rodolfo e Márcia levaram consigo suas cinzas para o Malecón, ali onde ela viveu com os pais até os 17 anos. Havana, com suas fachadas descascadas e sua beleza indestrutível, abriu novamente os braços para a filha que conheceu pouco, mas que nunca esqueceu.
Mas, antes de ir ao final, vale revelar um segredo. Márcia Daylin, que chegou aos Satyros pelas mãos de Phedra, foi a escolhida para guardar suas cinzas. Combinamos assim, lá atrás: uma parte seria distribuída ao longo dos espetáculos. Sempre, em algum momento das peças, Márcia ou outro ator ou atriz entrava em cena com as cinzas e as espalhava pelo palco. Pequenas porções, quase invisíveis, mas que garantiam que Phedra estivesse ali conosco, respirando com a cena. É possível que algum espectador, sem saber, tenha levado para casa uma partícula de Phedra. E fizemos isso também do alto do Bloco Baixo Augusta, no Carnaval de 2017. Lembro desse dia: Maria Casadevall estava conosco e, enquanto o carro entoava “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, Phedra se misturava aos milhares de foliões daquela tarde quase noite. Talvez nunca tenha sido tão livre quanto ali.
Mas voltemos a Havana. Naquele dia, a noite estava furiosa. O mar rugia como se também quisesse dizer algo, como se reconhecesse, naquele punhado de cinzas, uma memória antiga. As ondas se erguiam em alturas improváveis, quebrando contra o paredão com força de séculos. Foi nesse encontro entre fúria e acolhimento, entre mar e lua, que Phedra voltou a ser cubana. Por direito, por destino, por amor.
Quando suas cinzas tocaram o vento e depois o mar, algo se aquietou. Como se o mundo respirasse melhor. Como se Phedra, que passou a vida reaprendendo a existir, enfim tivesse encontrado um lugar onde não precisasse mais lutar por nada.
Agora ela pertence ao mar de Havana. À espuma que sobe, às pedras que resistem, ao sal que insiste. Phedra está em paz. Não como alguém que parte, mas como alguém que volta.
E há retornos que são mais belos do que qualquer despedida. Talvez porque devolvem ao mundo aquilo que sempre foi dele. E devolvem a nós a certeza de que algumas vidas, mesmo as mais feridas, encontram um jeito de terminar em luz.
* Na foto, Phedra no Malecón, em Havana, talvez em 2009
