CRÔNICA | O Segredo dos Afetos

Aqui em casa moramos dois humanos. Mas quem manda são elas. Duas gatas e uma cachorra. Embora, se formos justos, talvez devêssemos dizer: duas presenças felinas enigmáticas e uma criatura solar que ainda acredita que o mundo é um parque de amizades. Neuza, Faustina e Lupita. Cada uma com sua história. Cada uma com sua dor. Cada uma com seu encantamento.

A Neuza (a segunda na foto)  apareceu do jeito que só os gatos sabem aparecer: devagar, como se não quisesse incomodar, mas também como quem tem todo o tempo do mundo. Foi durante a pandemia, quando nos refugiamos no mato de Parelheiros. Ela vivia ali, abandonada depois que uma família se mudou e deixou duas gatinhas para trás. Uma foi adotada por um casal; a outra, a Neuza, ficou por ali. Vagava entre árvores e medos, fugindo de quatis e cachorros, miando ao longe. Foi esse miado insistente que nos aproximou. O som de quem sobrevive e, mesmo ferida, ainda espera algo de bom. Levou tempo até que ela se deixasse tocar. Mais tempo ainda até confiar. E eu entendo. Os humanos não são, mesmo, seres confiáveis.

A Faustina chegou de outro abismo. Encontrada na rua, depois de ter sido espancada e conhecido a pior face do humano. Foi levada ao hospital, onde se descobriu que carregava seis filhotes mortos no ventre. Quase morreu. E foi assim, entre a vida e a morte, que nos conhecemos. O espanto: ela voltou com doçura. Com amor. Com fé. Faustina confia em humanos. Ama humanos. E esse é, para mim, o mistério mais comovente. De onde vem essa ternura intacta, essa capacidade de amar o que a feriu?

Faustina é toda do Rodolfo. Nele, ela se aninha, o segue, o reclama. Mas quando ele viaja, ela me procura. Cheia de ausência, como se dissesse: “Não é o que eu queria, mas você serve.” Já a Neuza é minha. Ou melhor: eu sou dela. Passeia pela casa com uma elegância tensa. Foge da Faustina, que vive implicando. E também da Lupita, nossa mini golden, que a ama com intensidade canina. Quer dizer, sem sutileza alguma. Lupita jura que Neuza é um cachorro. E Neuza, que sabe muito bem que não é, foge. Se esconde. E, às vezes, olha para tudo isso com aquele olhar ancestral dos gatos, que parece guardar memórias de outros séculos.

É assim que vivemos. Dois humanos, duas gatas, uma cachorra e muitos territórios. Há uma geopolítica silenciosa em nossa casa. Quartos que são domínios, camas que são disputadas, olhares que fazem a vez da diplomacia. E no meio disso tudo, há poesia. Porque gatos são poesia em estado bruto. Não pedem, não suplicam. São. E quando nos escolhem, fazem isso com a soberania de quem não precisa de ninguém. Mas, ainda assim, decide ficar.

Neuza é resistência. Faustina é fé. Lupita é amor em estado bruto. E eu? Eu aprendo. Escuto. Cuido. Porque, no fim, viver com animais é isso, habitar o mistério. E aceitar, com gratidão e humildade, que o amor verdadeiro às vezes vem em silêncio. Com passos leves. Com focinhos molhados. Ou com olhos que nos atravessam e dizem, sem dizer: “Cuide bem de mim porque eu vou cuidar de você.”

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1877

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