CRÔNICA | O ódio que nos atravessa e a arte que nos cura

Às vezes, me pego pensando se o ódio não nasce de um lugar de desamparo. É como se, dentro de cada um de nós, houvesse uma criança ferida, ansiosa por ser vista. Na falta de um olhar compreensivo, essa criança se encolhe, grita, esperneia… e daí nascem a raiva, a hostilidade, o desejo de ferir. Ou, numa linguagem mais próxima da psicanálise, talvez o ódio seja o reflexo de uma dor que ainda não sabemos colocar em palavras.

Refletir sobre isso me leva a revisitar a minha própria trajetória. Desde cedo, decidi que não nasci para passar pela vida sem deixar rastros. Ator há 36 anos, ao lado do meu parceiro Rodolfo García Vázquez, fundei a Cia. de Teatro Os Satyros, em São Paulo. Lembro-me de um tempo em que o teatro não era um terreno fértil para quem vinha de camadas populares. Havia uma aura quase “sagrada” da classe média, uma cultura pensada, criada e consumida por quem tinha acesso facilitado a palcos, livros, cinemas. Nós, como uma companhia pobre, pretendíamos romper esses muros.

As propostas para me arriscar em outros espaços nunca faltaram. Fui “sondado” repetidas vezes para integrar produções da televisão, em especial da Globo. Mas nunca me interessei. Não que eu desmereça quem se aventure nesse tipo de trabalho. Não mesmo, mas não era – e segue não sendo – o meu desejo. Sempre acreditei que vim ao mundo não para flanar, mas para criar um impacto, especialmente no teatro.

O curioso é que, conforme meu trabalho se expandia – Os Satyros crescendo, rodando o mundo, e, depois, o sonho ainda maior de criar a SP Escola de Teatro –, muitas portas se abriram, mas também escancararam outros sentimentos alheios. Um deles, o ódio. Surgiu na forma de olhares desconfiados, de piadas ácidas, de comentários que chegam pelos cantos. A cada conquista, a cada parceria internacional, o ressentimento de algumas pessoas parecia ganhar mais força, como se a minha “biografia inflada” servisse de gatilho para a frustração e a raiva delas.

Na perspectiva psicanalítica, eu diria que esse tipo de emoção intensa costuma vir de uma inquietação interna, algo que o outro não consegue elaborar sobre si mesmo. Mas, claro, isso não torna as coisas mais fáceis. Receber ódio ou críticas amargas pode ferir como uma flecha certeira. Às vezes, a gente enfrenta noites mal dormidas, passa horas tentando entender “o que foi que eu fiz para merecer isso?”. E quando a resposta não vem, é difícil não ser tomado por uma espécie de tristeza.

Só que o teatro – essa forma de arte em que entregamos o corpo, a voz, a alma – me ensinou desde cedo a lidar com as dores e a transformá-las em cena, em palavra, em vida. É no palco que exponho medos, exponho a condição humana, esse emaranhado de contradições. E, ali, percebo que o ódio não é só do outro; ele também pode viver em mim, se não estiver atento às minhas próprias feridas. Afinal, ninguém está imune à mágoa, à inveja, ao desconforto com o sucesso alheio.

Por isso, a SP Escola de Teatro nasce também desse desejo de inclusão, de dividir, de formar novas gerações que cheguem aonde eu não cheguei. Formar pessoas que, quem sabe, possam dissipar a raiva que sentem do mundo ao encontrarem algum sentido na arte, ao experimentarem novos olhares. Vejo milhares de aprendizes de teatro circulando por ali, e isso me comove de um jeito que poucas coisas são capazes de fazer. Cada rosto diferente é um lembrete de que estamos vivos, pulsantes, prontos para nos ver no outro.

Claro que, nesse caminho, continuamos recebendo elogios e, sim, ódio. Mas, com o tempo, aprendi que ambos podem ser faces da mesma moeda: a forma como nos enxergam – quem nos aplaude e quem nos apedreja – fala mais sobre eles do que sobre nós. E, ainda assim, dói. Uma dor que tento acolher com empatia, entendendo que o ódio é um apelo, um pedido de socorro disfarçado de agressão. E é na arte que esse grito encontra algum tipo de cuidado.

Ao final de cada espetáculo, carrego a convicção de que não passei por aqui para simplesmente existir. Passei para construir, compartilhar e, talvez, inspirar alguém a se olhar com mais ternura. Se o ódio continuar surgindo, que seja também um combustível para o afeto – que eu consiga olhar o outro não como um inimigo, mas como alguém que ainda não reconheceu a própria dor. E que o teatro siga como um espelho generoso, refletindo tanto o melhor quanto o pior de nós, mas sempre nos convidando a encontrar, na dor, espaço para a cura.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1799

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