A manhã chega embaciada de cinza. A TV anuncia: madrugada mais fria do ano. Lá fora, a cidade estremece. Cá dentro, algo também se encolhe. O frio não é só temperatura, é convocação de memória, de vínculo, de angústia. A psicanálise nos ensinou que o trauma, às vezes, se anuncia como uma brisa gelada que atravessa o corpo, mesmo quando estamos cobertos. E hoje, tudo me atravessa.
Penso nas pessoas que vivem nas ruas. Penso com o corpo. Sinto um esgar discreto entre o estômago e o peito. Um susto silencioso. Não é culpa. É outra coisa. Talvez uma espécie de revolta cordial, como aquelas que a gente cultiva quando percebe que o mundo está mal montado e que o alicerce cede justamente onde mora a dignidade dos que mais lutam.
Ainda antes das oito, chega a minha diarista. Vem sorrindo. Veio da extrema Zona Leste. Acordou antes das cinco. O frio? Não sei como ela o enfrentou. Imagino os ossos finos, a roupa de ontem, o corpo miúdo e teimoso. Eu, que hoje reclamei por ter acordado às seis, me encolho diante da grandeza anônima dela. E então me lembro, também fui criança pobre. Também vi meus pais enfrentarem madrugadas, décadas, silêncios. Minha mãe, rainha da máquina de costura. Meu pai, soldado do concreto, um pedreiro que dizia com orgulho: “fui eu que construí o metrô de São Paulo”. E não era metáfora. Ele realmente esteve lá. Fundando túneis. Abrindo passagens. Quem sabe, no fundo, ele tentava escavar alguma travessia para o nosso futuro.
Então vou pensando na minha diarista. Setenta e sete anos. Sim, 77. Um número que dói de tão improvável. Já tentei convencê-la a parar. Aposentar o corpo. Deixar que eu siga pagando suas diárias, que ela fique em casa, que cuide de si. Ela se irrita. Diz que não. Que adora vir ao centro, encarar os vagões lotados, viver a cidade. O desejo insiste, apesar do corpo. A vida, teimosa, habita onde menos se espera. Contratei alguém mais jovem para ajudá-la às sextas-feiras. Tento protegê-la como posso. Ela permite, em doses pequenas, esse cuidado. Talvez porque, no fundo, o amor também precise ser discretamente negociado.
Freud dizia que o amor é uma tentativa de remendar o desamparo original. E penso. É isso que tento fazer com ela. E talvez seja isso o que ela faz comigo também. Nos acolhemos. Nos reconhecemos. E nos cuidamos dentro do que é possível. Que quase nunca é o ideal, mas às vezes é suficiente.
Hoje ela chegou gripada. Tentou esconder. Mas eu vi. Ela não queria que eu percebesse. Eu fingi não notar demais. A transferência também vive dessas delicadezas. Saber quando calar e quando tocar. Saber até onde vai o gesto que o outro é capaz de receber.
O dia segue. Ainda é frio, mas algo em mim se aquece. Uma pequena reconciliação com a brutalidade do mundo. Algo da ternura que insiste. E, quem sabe, também uma recompensa moral. Essa que brota quando escolhemos não nos anestesiar diante da dor do outro. E do outro em nós.
Porque é isso que a psicanálise também nos ensina. Estamos todos atravessados. E quando alguém entra pela nossa porta, não é só a casa que se limpa. É a alma que, por um instante, se reorganiza.