Quando a tela escurece depois dos créditos de Homem com H, retrato luminoso que Esmir Filho compôs de Ney Matogrosso, algo permanece aceso. É como se o filme deixasse um candelabro aceso dentro da gente, projetando sombras longas de um tempo que já não cabe mais na memória. A luz vacila, mas insiste: lembra a gente de que sobreviver foi, um dia, verbo urgente.
Cheguei a Curitiba em 1982 com a pressa de quem descobre o corpo e a noite ao mesmo tempo. O mapa da cidade se desenhava pelo calor dos primeiros toques; cada esquina parecia espirituoso convite a atravessar fronteiras até então imaginárias. De início, o prazer era olímpico e ingênuo — brevíssimo interlúdio antes que a palavra “AIDS” rasgasse o noticiário, confundisse o desejo com sentença e nos carimbasse como praga ambulante.
Transar sem preservativo depressa se tornou gesto de roleta russa. A cada beijo, uma conta de rosário se partia; a cada festa, alguém desaparecia do círculo de amigos. O medo nos encurvou a espinha e nos obrigou a vigiar o próprio sangue como se fosse contrabando. Foi assim que aprendi a dormir de botas, certo de que o amanhã podia amanhecer interditado.
Houve quem não suportasse o cerco. Meu melhor amigo — artista múltiplo em potência, voz que poderia ter habitado palcos e discos — trazia o vírus como se carregasse um segredo sujo preso à gola da camisa. Durante anos cultivou silêncio de angústia, rindo baixo para não chamar a morte pelo apelido. Quando finalmente me confidenciou seu segredo, a confidência soou como falha moral. A culpa, essa amputação invisível que a epidemia anexou às nossas biografias, impediu esse meu amigo de ocupar o centro da cena. Morreu de outra causa, mas foi o HIV que lhe sussurrou medos suficientes para cancelar metade da vida.
Hoje, converso com adolescentes que nasceram na temporada dos antirretrovirais, geração para quem a sigla soa estatística médica ou aviso de bula. E, ainda bem, é quase só isso: um fato clínico administrável. Mas peço que, antes de celebrar o alívio, recolham essa história que insiste em latejar sob a pele dos mais velhos. Porque ali estão a engenharia da solidariedade improvisada, as redes de cuidado inventadas à força, e uma ética do prazer que aprendeu — entre funerais e festas clandestinas — a dizer sim ao erótico sem dizer não à prudência.
Se há esperança possível, ela mora nesse fio que costura passado e presente como dois pedaços de tecido disforme: uma costura torta, porém firme. A memória da peste não é mero relato de catástrofe; é manual de sobrevivência. Ensina que o corpo, quando ferido, descobre também sua vocação para a dança. Ensina que o desejo, mesmo sitiado, ainda é capaz de fundar futuro.
E talvez seja essa a herança mais concreta que posso entregar à geração Alpha: não apenas estatísticas ou protocolos, mas o aviso de que a vida insiste em se reinventar no espaço mínimo entre o risco e o rito. O vírus já não determina destino; contudo, a lembrança do terror que ele instaurou continua a nos lembrar que nenhuma conquista permanece sem vigilância. Celebrar o agora, portanto, é também vigiar o horizonte, mantendo acesa a chama antiga — não para venerar o medo, mas para iluminar o caminho de quem vier depois.