CRÔNICA | Lupita e a delicada pedagogia do imprevisto

Confesso: até ontem eu só conhecia o amor canino no tempo em que os cães já vinham prontos, com suas manias adultas meticulosamente estruturadas. Cacilda e Chico chegaram à minha porta assim — maduros, donos de si, quase professores zen do afeto. Doze anos inteiros vivi à sombra benevolente dessa dupla, e tamanha foi a lição que a ideia absurda de trocar o teatro pela biologia insinuou-se em pleno cinquentenário. Bastou o silêncio pandêmico de Parelheiros: uma casa de madeira, o mato por varanda e, à distância, o rumor abafado da cidade que fingia existir sem nós. Ali, entre saguis, quatis, bugios, cobras e orquídeas, compreendi que o palco do mundo é maior que qualquer tablado — e que, às vezes, o espetáculo se faz sem palavras.

Foi nesse êxtase verde que, em determinado momento, abrigamos treze cães deixados à própria sorte na estradinha vizinha. Cada rabo abanando era um ponto de interrogação vibrante, exigindo urgência de futuro. Descobri então que resgatar um bicho é verbo de longo curso: primeiro acolhe-se o corpo, depois sustenta-se o destino. Um a um encontraram casa, e o quintal esvaziado pareceu estranhamente grande — até ontem.

Ontem ganhou nome de Guadalupe, nossa Lupita, tamanho de caixa de transporte e uma coragem que ainda cabe mal nos próprios ossos. A Chegou tímida, farejando limites entre dois gatos soberanos. Em menos de nada aprendeu que a vida é grande, que a casa tem frestas convidativas e que o coração humano, se tocado na medida certa, abre-se como porta sem ferrugem.

O mais assombroso, contudo, foi notar o enxame de vozes que a filhote arrastou para dentro dos meus dias. Cada passeio converteu-se numa pequena assembleia de tutores apaixonados: gente de toda parte, com sobrenomes, geadas de cabelos, pronúncias distintas e certezas provisórias — todos unidos pelo cordão umbilical das guias que nos prendem à ternura. Descobri vizinhos que jamais havia cumprimentado, ouvi histórias que não teriam espaço nos corredores apressados do cotidiano, troquei telefones como quem troca sementes de jacarandá. Percebi então que toda responsabilidade individual carrega uma franja comunitária: cuidar de um ser é costurar a própria biografia ao tecido que envolve o quarteirão inteiro.

Hoje cedo saí com Lupita enquanto o outono ensaiava sua iluminação oblíqua. Havia na calçada um cheiro de pão novo e nos plátanos um rumor de despedida; esse pacto silencioso das estações que, sem alarde, endurece a seiva para que o inverno não nos quebre. Lupita avançava feliz, como se toda rua fosse estreada agora, e aquela alegria simples devolveu brilho às superfícies que a rotina costuma embaçar. Pensei então que criar um filhote é, sobretudo, treinar o espanto: ensinar-lhe que o mundo se renova a cada esquina e aprender, com ele, que surpresa é o único pedigree confiável da existência.

Foi aí que a biologia imaginária e a dramaturgia concreta se reencontraram: ao perceber que cada gesto de cuidado — um pote de água fresco, um cobertor rearrumado — é também ato narrativo, texto que escrevo no corpo de outro ser vivo. Minha peça mais urgente talvez não esteja no palco, mas no chão da cozinha onde Lupita patina de empolgação; nela, a denúncia é simples e obstinada: em tempos de pressa e indiferença, dedicar tempo a um animal é um leve ato de desobediência civil.

Guadalupe não sabe do passado nem cogita a primavera futura; ela é pura presença, acesa no instante como fagulha insistente. E eu, que sempre precisei de enredos complexos para justificar os dias, descubro-me contente com a narrativa reduzida a um latido, a uma corrida torta, a um focinho que me convoca para fora das próprias preocupações. Viver, percebo, é aceitar a delicada pedagogia do imprevisto: suportar surpresas, como quem atravessa o outono confiante de que, do outro lado da noite fria, alguma flor há de insistir outra vez.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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