Na sala de casa há um espelho tão grande que parece ter entrado em cena por engano. Veio do cenário de uma peça dos Satyros. Ficou porque, dizem, espelho de cristal assinado não se dispensa assim. Quem o visita costuma elogiá-lo pelas esquadrias finas ou pela profundidade que empresta à sala. Eu o vejo como um quadro tímido que se recusa a virar paisagem, e tampouco o consulto para saber de mim. Nunca temi as rugas — são notas de rodapé que o tempo escreve na pele. O que me inquieta é a convocação silenciosa do espelho: “Diga quem é você, agora.”
No banheiro, estabeleci uma trégua muda. Deixo o vapor embaçar o vidro, escovo os dentes de soslaio. Ignorar funciona — até que não. Todo espelho guarda um eco de infância: aquele instante lacaniano, entre seis e dezoito meses, em que alguém ergueu nosso corpo instável diante de um retângulo brilhante e anunciou, sem palavras: “Ali está você.” Foi o primeiro susto. A imagem prometia inteireza. O corpo, bamboleante, desmentia. Desse atrito nasceu o ego — personagem que passamos a vida tentando dirigir enquanto ele insiste em improvisar.
Vieram depois outras molduras: vitrines, olhares de amantes, janelas de vídeo-chamada que devolvem um eu comprimido em pixels. O “espelho social” de Lacan multiplicou-se até cobrir fachadas inteiras, como se São Paulo precisasse confirmar, repetidamente, a própria existência. Diante de tantos reflexos, optar por não me olhar tornou-se um pequeno ato de rebeldia, feito criança que fecha os olhos para apagar o mundo.
Ainda assim, há manhãs em que o espelho se converte num analista silencioso. Entro distraído e ele devolve não a superfície — barba por fazer, olheiras tardias —, mas a pergunta antiga: “De quem é esse rosto, afinal?” Então percebo que o temor recai menos sobre o vidro e mais sobre aquilo que escapa ao reflexo: a fresta, a rachadura, o avesso que não cabe no enquadramento.
Talvez por isso superstição e psicanálise compartilhem o presságio do espelho quebrado. Não é o estilhaço que apavora, mas o destino da imagem: identidade espalhada em cacos, sem moldura que a organize. Quem junta os pedaços recolhe também retalhos de si. E corre o risco de reconhecer facetas que preferiria manter fora de foco.
No fundo, convivo com o espelho como se convive com fantasmas: não provoco, não nego. Ele lembra que ninguém é só carne. Somos também imagem, projeção, fantasia — e, sobretudo, falta. Lacan diz que a conquista do eu começa no espelho. A psicanálise inteira sussurra que ali também nasce a divisão. Porque jamais seremos idênticos ao que vemos. Talvez esse hiato inevitável explique o receio — ou, quem sabe, alimente a curiosidade.
E assim sigo. Às vezes passo rápido pelo corredor, evitando o clarão da moldura. Noutras, paro, encaro, pergunto algo que jamais retorna. Antes que o chuveiro nuble tudo, faço um aceno para o homem do outro lado — distante o bastante para permanecer enigma, próximo o bastante para lembrar que sou, ainda, um mistério refletido em vidro.