CRÔNICA | Escrevendo para ninguém

Escrevo para ninguém. E não há aqui qualquer tom de lamento. Antes, escrevo com uma obstinação quase biológica, como quem registra os próprios batimentos cardíacos só pra provar que ainda há pulso. Mas sigo escrevendo. Não por vaidade, mas por necessidade. Cada linha é meu jeito de gritar baixinho: estou vivo, estou disposto a encarar mais um dia e outro e mais outro, mesmo que o mundo siga me oferecendo mais desilusões que epifanias. Como quem joga garrafas ao mar sabendo que o mar é vasto, desinteressado, e que provavelmente nenhuma dessas garrafas encontrará praia, leitor ou destinatário. Mas jogo assim mesmo.

Meu último livro, “Entre o nada e o infinito”, lançado há dois anos, é um catatau de 700 páginas. Um exagero, confesso. Um monumento de papel à persistência inútil. Na primeira edição – e não haverá uma segunda – foram impressos 500 exemplares, como quem planta um pomar em solo infértil e insiste em regar. Quantas pessoas leram o livro? Não, isso não é uma metáfora de autopiedade. É só um dado de realidade.

Escrevo, acima de tudo, por um tipo estranho de sobrevivência psíquica. Cada texto é um gesto de manutenção. De dizer ao mundo – ao nada – que estou aqui. Respirando, lutando contra os próprios fantasmas, tentando reorganizar o caos com palavras que quase sempre me escapam pelos dedos. Escrever é o meu jeito de afirmar: sim, estou disposto a encarar mais um dia. E outro. E mais um. Mesmo que cada um desses dias traga mais cansaço do que esperança.

Já escrevi de tudo: peças de teatro, roteiros, crônicas, livro infantil, artigos, ensaios. Até sinopse de novela para um país africano que nunca saiu do papel. Por anos tive uma coluna semanal no Jornal do Estado, em Curitiba. Só não escrevi romance e poesia. Na poesia, até me arrisquei, mas sempre às escondidas, disfarçando versos no meio de diálogos teatrais, como quem joga flores dentro de um armário trancado. O romance, esse já tem nome, estrutura e personagens. Está todo ali, como uma planta aguardando o tempo de brotar. Mas o tempo – ah, o tempo – é um luxo que venho adiando. Um período sabático que nunca chega, sempre empurrado para um calendário que insiste em me devorar.

E veja que ironia. Agora mesmo, enquanto escrevo este texto, já sei que ele também vai cair no mesmo limbo das coisas feitas para ninguém. Talvez seja lido por você – que chegou até aqui, milagre dos algoritmos ou do acaso. Mas, estatisticamente falando, sei que são poucos os que ainda suportam uma crônica que ultrapassa o tamanho de uma legenda de Instagram.

Me recuso a acreditar que a comunicação humana deva caber em frases de efeito. Não quero ser reduzido a um tuíte espirituoso ou a um carrossel de dicas motivacionais. Sou das longas conversas. Do texto que exige cadeira confortável, café quente e um pouco de paciência. Escrevo como quem cultiva vinhos. Para o futuro, para o risco, para a improbabilidade de ser saboreado por alguém algum dia.

Ainda escrevo cartas também. Sim, daquelas de papel e que segue pelo correio. Uso canetas, envelope, selos. Um gesto que já é quase arqueológico. Só envio para quem, como eu, suporta a leitura de escritos que não cabem em telas de celular. São páginas inteiras, como quem constrói uma ponte entre dois mundos solitários. Escrevo à mão com canetas que adoro. Aliás, sou um colecionador delas. Tenho algumas raridades. Algumas Montblanc e até uma Parker 51 que guardo como relíquia afetiva. O ritual da escrita, para mim, começa muito antes da primeira palavra. Se inicia na escolha da caneta, na textura do papel, no cheiro dos cadernos. E por falar em cadernos, também tenho alguns bem bonitos. Ultimamente, descobri na Amazon um fornecedor que vende cadernos incríveis.

Lembro agora da comunidade do Orkut onde passei bons anos, “Apaixonados Por Cartas”. A gente trocava correspondências, sem saber se algum dia as respostas chegariam. Dali vieram algumas das minhas amizades mais improváveis e bonitas. Como a Ana Luísa, que morava em Salvador quando começamos a conversar. Era estudante de Letras, cheia de sonhos e palavras. Hoje, mora nos Estados Unidos, é professora de línguas latinas numa universidade na Flórida, tem marido, filhos, rotina de gente grande. Nunca nos vimos pessoalmente. Talvez nunca nos vejamos. Mas ela leu o “Entre o nada e o infinito”. As 700 páginas! E quando terminou, me escreveu uma carta. Daquelas longas, emocionadas, cheias de observações que só quem atravessou o livro inteiro seria capaz de fazer.

E talvez seja por isso que eu continue escrevendo. Por mim, mas pela Ana Luísa também. Pelas garrafas lançadas ao mar. Pela remota possibilidade de que alguém, em algum lugar, vá abrir uma delas e, por alguns instantes, dividir comigo o peso do tempo, a delicadeza das desilusões e a beleza ingrata de continuar, apesar de tudo, escrevendo para ninguém.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1863

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