Passei a infância suspenso numa geografia frondosa — cartógrafo mirim que desenhava o mundo não em cadernos, mas na altitude dos galhos. No quintal de casa, um abacateiro ancião nos emprestava a copa como varanda. Ali, eu lia e fazia lições de matemática enquanto formigas cruzavam o caderno e os livros. Meu primeiro grande projeto de vida, jamais abandonado, era construir uma casinha na árvore.
Aquele mesmo abacateiro foi também meu laboratório de afetos. Lixei um galhinho até que virasse lábios e, ensaiando futuros romances, treinei beijos em um galho que nunca reclamou de falta de emoção. Registre-se: meu primeiro beijo foi botânico.
Não era, claro, monopólio do quintal. A mangueira do vizinho oferecia frutos e a goiabeira da madrinha Maria, território de efetos, ainda me recebeu até poucos anos atrás. Na pandemia, subi um pinheiro colossal em Parelheiros e descobri que, embora o joelho proteste, a alma reconhece sem esforço o caminho para o topo.
Nenhuma, porém, superava as jabuticabeiras do Tomaizinho: dezenas delas, plantadas por meu pai quando aquela chácara ainda era da nossa família. Na primavera, cobriam-se de flores e, logo depois, de bolinhas negras que cintilavam como constelações de bolso. Escalar até o alto e comer jabuticabas direto do galho era, para mim, uma degustação dos deuses. Entre irmãos e vizinhos, eu não era o único aventureiro, mas era, sem dúvida, um dos mais ousados: até eucaliptos entravam no currículo, como carimbos em passaporte.
Hoje, a saudade dessas alturas chega sem pedir licença. Talvez porque, de todas as fronteiras que a vida impôs, as primeiras que ultrapassei eram de casca e seiva. Subir era desobedecer à gravidade — e às sentenças adultas de que “árvore não foi feita para gente.” Engano: foi, sim. Pelo menos para aquela parte secreta que garante que ainda exista menino em quem já virou gente grande.
Se algum dia me virem no alto de outra árvore, dispensem os bombeiros: estarei apenas visitando meu endereço original, onde boletos não chegam e o tempo pulsa no compasso das jabuticabas crescendo. Afinal, quem aprende a existir entre folhas jamais desaprende de voar.
Que presente foi ter te conhecido e ter oportunidade de ler seus escritos! Muito obrigada! Amei seu texto!