CRÍTICA: Todos os Sonhos do Mundo sob a Mesa

Por Paulo Rogerio Rocco

Esta é a primeira crítica de peça teatral on-line que escrevo. Obviamente que preferia estar na plateia, na primeira fila, mas em tempos brechtianos, a apresentação sobre a qual vou falar – literalmente – derrubou pétalas sobre minha alma. E me fez sorrir em tempos tristes.

Foi ontem à noite. Por uma live do Instagram me senti privilegiado por estar na sala de um dos maiores nomes do teatro paulistano, assistindo a um espetáculo que parecia estar sendo apresentado exclusivamente para mim.

Ele olhava nos meus olhos, falava comigo como quem bate um papo na mesa do café da manhã na varanda à beira do lago. Declamava poemas e contava histórias que eram dele, dos irmãos, das amigas, das pessoas da cidade onde nasceu. E assim ele falava das minhas lembranças, dos meus irmãos, das minhas amigas, das pessoas da cidade onde nasci.

Estou me referindo a “Todos os Sonhos do Mundo”, produção de Os Satyros dirigida por Rodolfo García Vázquez, com a atuação delicada e precisa de Ivam Cabral. A peça está em temporada digital, de sexta a domingo, às 21 horas, no Instagram do ator.

Primeiro veio a história de Dimi, irmão do Ivam. Depois ele contou sobre Jane, sobre Lila. Quinze minutos de espetáculo e me veio à cabeça uma graphic novel de Will Eisner: “O Edifício”.

Esta é uma das obras máximas do mestre. É uma história de fantasmas, embora os protagonistas sejam, conforme aprendemos, tão fantasmas em vida quanto o são na morte. Há o Mensh, que não era capaz de salvar as crianças; a Gilda, que não se casou com um poeta; o Tonatti, violinista de rua que morreu junto com o prédio e o empreiteiro Hammond, um homem obcecado.

Durante minha Pós-Graduação em Direção Teatral realizei um estudo comparando a obra de Eisner à de Tchekhov. Os textos do quadrinista, tido como o responsável pela criação da Graphic Novel, poderiam ter sido, em minha opinião, claramente influenciados pela obra do dramaturgo russo, que inaugurou o drama de pessoas comuns que, embora sufocadas por uma realidade apática, eram impulsionadas por um apaixonado desejo de viver.

Estão nos traços de Eisner, por exemplo, a decepção característica de tantos personagens de Tchekhov, frente a esta apatia do cotidiano. Assim como estão as personagens do espetáculo de Cabral diante do que podemos chamar de destino.

Em “A Gaivota”, por exemplo, esse destino é determinado por forças que eles são incapazes de superar, assim como em várias obras do quadrinista. Nos dramas de Tchekhov, os homens vivem sob o signo da renúncia, conforme nos confirma o estudioso Peter Szondi.

A renúncia ao presente é a vida na lembrança e na utopia; a renúncia ao encontro é a solidão. “Três Irmãs” representa seres solitários, ébrios de lembranças, sonhadores do futuro. Seu presente é pressionado pelo passado e pelo futuro.

Como a história de Jane no espetáculo de Cabral, a miss que não se casou por uma “flatulidade” do tal destino, se me permite a criação de palavras. Ou como a história de Dimi que encontrou o amor, encontrou a paz, encontrou o trabalho e um desencontro do destino – ele de novo – terminou sua história. Assim como os relatos sobre Lila e o acontecimento perto do campinho do bairro.

As personagens de Ivam, mesmo estando nas lembranças de Ribeirão Claro, poderiam estar no edifício de Eisner. Poderiam estar no prédio em frente.

As sagas de Dimi, Jane e Lila estão ligadas, por característica, às das três irmãs que nunca voltam a Moscou, da dona do Jardim das Cerejeiras que perde a propriedade ou de Tio Vânia que não alterou em nada sua vida apesar da incrível rebeldia.

No livro “Ao Coração da Tempestade”, o personagem de Eisner é um soldado em uma viagem de trem rumo a um local desconhecido. Uma jornada rumo a uma nova vida. Atrás dele ficaram os anos de juventude, as lembranças da infância, os sonhos. Da janela, bêbado dessas lembranças, ele sonha o futuro. Assim como Ivam Cabral ao declamar o poema final, de Fernando Pessoa, de onde sai o nome do espetáculo.

E de repente, não me sinto sozinho na plateia virtual. Nunca estive só. Desde o começo. Ali, do outro lado da lente há outras pessoas nas poltronas ao meu lado. Uma procissão invisível seguindo palavras, poemas, cantos e esperança de um Ator iluminado.

Ivam está ali, no palco vazio. Ele está embaixo da luz, mas não vê o público. Mas sente que estamos ali e nos devolve bálsamos poéticos em forma de pétalas. Ao final, aplaudimos. Ele não nos ouve.

Mas todas as pessoas que assistiram, assim como eu, tem a certeza de que, se a chuva demorar a passar, há uma mesa na cozinha de uma casa simples. Sob ela cabe cada um de nós. E ali, dentro desse coração imenso, a tempestade não irá nos atingir.

Fonte: Sem Comentário

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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