Documentário em disputa no Festival do Rio tem como tema um evento apelidado de “Woodstock paulistano”: a gincana teatral promovida pelo grupo Os Satyros
RIO – Em seu quinto dia de competição, quando nenhum resultado ou certeza se fazem visíveis no ar, a Première Brasil foi ao teatro, de mãozinha dada, numa ciranda dionisíaca, com “Satyrianas, 78 horas e 78 minutos”. Atração da seara de documentários na luta pelo troféu Redentor, a produção, de CEP paulistano, é assinada a três cabeças por Daniel Gaggini, Fausto Noro e Otávio Pacheco, tendo como alvo um evento apelidado de “Woodstock paulistano”: a gincana teatral Satyrianas, promovida pelo grupo Os Satyros.
Mais do que festival de linguagens de encenação, o folguedo cênico funciona como um manifesto de ocupação cultural da recém-reinaugurada Praça Roosevelt, a fim de tornar o local uma referência de agitação artística na maior metrópole do país. Mas há pouco espaço para a informação no arranjo narrativo de filme centauro – metade doc, metade ficção – proposto por seus realizadores com um uma fome de invenção tão grande que deixa a incongruência lambuzar os beiços.
A fim de traduzir a estranheza que um evento realizado ao longo de três dias e seis horas ininterruptos causa, “Satyrianas, 78 horas e 78 minutos” adota uma proposta irreal que logo de cara se revela cascata. Na “trama”, um cineasta italiano de carreira nos EUA, falante de um inglês macarrônico, é convidado para se instalar em São Paulo e registrar uma edição das Satyrianas do começo ao fim. Percebe-se, de cara, pelo procedimento adotado pelo produtor contratante que o tal “filme de encomenda” é um recuso ficcional dentro do filme real de Gaggini, Noro e Pacheco.
Este, a valer, alterna a brincadeira de mockumentário com uma série de depoimentos de intelectuais acerca da relevância do teatro para a oxigenação da cultura brasileira. Opta-se por manter no anonimato a identidade desses entrevistados, como se fossem “personagens” e não depoentes reais, o que faz a produção vibrar ainda mais para além da muro do documentário. Abrem o verbo dramaturgos, diretores, atores e críticos como Rubens Ewald Filho, Mario Bortolotto, Gero Camillo, Hugo Possolo, Aimar Labaki, Roberto Alvim, Ivam Cabral, Raul Barreto e outros.
Cada fala ilustra um pouco do papel das Satyrianas para a evolução criativa das artes em São Paulo, ajudando o longa a traçar a cartografia crítica de uma cidade de valores em mutação. Cada fala maqueia informações com instrumentos brincantes de jogos dramáticos. As falas de Ivam Cabral, sobre uma agenda de telefones com o número do Silvio Santos, rende o momento de maior diversão do longa, que tem uma edição ritmada, capaz de entreter e provocar reflexão.
A escorregadela maior se dá no bloco dedicado ao Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, espichado (e confuso) demais dentro de um arranjo coeso e azeitado pelo riso. Mesmo imperfeito em sua opção por unir extremos e forçar dialéticas, o filme funciona como um registro vivo (e vívido) de uma tentativa de revolução na epiderme de uma arte ancestral.
Fonte: O Globo, 2 de outubro de 2012