Crítica: ‘O Barbeiro de Sevilha’ vira saborosa brincadeira infantil no Teatro Bradesco

Iniciativa independente de ópera em São Paulo tem concepção lúdica de Rodolfo García Vazquez bem sustentada por cenários e figurinos vibrantes e dedicação teatral dos solistas

Por Márvio dos Anjos especial para O GLOBO
19/04/2024 18h56 Atualizado há um dia

Um dos pilares do gênero bufo, a ópera “O Barbeiro de Sevilha”, de Gioachino Rossini, ganhou uma encenação entusiasmada de Rodolfo García Vázquez, no Teatro Bradesco, no Shopping Bourbon, em São Paulo. Calcada na divertida ideia de transformar o jogo de gato e rato entre seus personagens numa brincadeira de criança, o espetáculo produzido pela UniOpera ganhou muito em leveza e agilidade, tornando-se um dos mais interessantes dessa iniciativa independente.

Ao encenar títulos muito populares, a UniOpera acaba provocando uma grata reação em cadeia, que incentiva as duas casas tradicionais de ópera de São Paulo (em especial o Municipal, mas também o São Pedro) a diversificarem repertórios e concepções.

Desde a famosa abertura da ópera, estreada em 1816, atrizes vestidas como meninas propõem à plateia que estaremos vendo uma brincadeira infantil com bonecos, que serão personificados pelos cantores. O destaque aí fica para os figurinos de Amanda Pilla B., que usa cores vibrantes e perucas de material rígido (algo entre o PVC e a espuma, pelo que se via da oitava fila) para criar visuais hilariantes para o barbeiro Fígaro (Rodolfo Giugliani, alternando-se com o também barítono veterano Sebastião Teixeira), o conde Almaviva (tenores Jabez Lima, no primeiro elenco, e Rafael Ribeiro no segundo) e Rosina (mezzo Lara Cavalcanti no primeiro, Marcela Vidra, no segundo). Os três conspiram para impedir que os planos de casamento do estúpido dr. Bartolo, tutor de Rosina e apaixonado por ela, se concretizem. Os cenários de Priscila Soares realçam a ideia lúdica com beleza e foram bem iluminados por Guilherme Bonfanti, tornando este “Barbeiro” um dos espetáculos mais visualmente bem sucedidos da UniOpera.

‘O barbeiro de Sevilha’, de Rossini, em encenação da UniOpera em São Paulo — Foto: Andrea de Camargo/Divulgação

Na estreia, que O GLOBO presenciou com o primeiro elenco, Jabez Lima e Lara Cavalcanti (que já tinha sido elogiada pela mesma personagem no Municipal do Rio em 2022, sob direção de Julianna Santos e regência de Felipe Prazeres) desempenharam seus papéis com graça e desenvoltura. Cavalcanti amadureceu sua concepção vocal a respeito da heroína: defende a ária “Una Voce Poco Fa” com a facilidade de uma veterana, além de ter adicionado mais camadas de humor à mocinha insubmissa. Jabez Lima, por sua vez, mostrou um timbre leve e gracioso para um apaixonado Almaviva, deslizando por ornamentos e glissandos com autoridade desde “Ecco, ridente in cielo” e nas difíceis partes dos concertatos. Seu personagem só perdeu certo brilho quando disfarçado de Don Alonso, em que a partitura pede uma voz mais caricata: em vez de ir para um som mais nasal, Lima estacionou num registro que parecia de difícil emissão, dando impressão de rouquidão em alguns recitativos.

O dr. Bartolo de Fellipe Oliveira (baixo que se alterna com Marcio Marangon) foi também um dos bons destaques musicais da primeira noite. Embora sua caracterização não o deixasse tão nitidamente idoso quanto o papel sugere, Oliveira encarou os desafios do papel com categoria e musicalidade, servindo uma deliciosa leitura de “A Un Dottor della Mia Sorte”, o que comprova a capacidade que a UniOpera demonstra de selecionar boas e jovens vozes. Desta vez, todos os cantores protagonistas – sem exceção – estavam extremamente empenhados em interpretar os papéis, sem negar teatro à ópera e à ação stop-motion proposta por García Vazquez, que paralisa os personagens em alguns momentos de silêncio. Essa concepção do gesto robótico, como se os cantores fossem bonecos animados por corda, fazia duvidar de sua fluidez ao longo do espetáculo, mas, no todo, a ideia acabou se provando satisfatoriamente.

Falta falar do Figaro de Rodolfo Giugliani. O barítono ainda tem um dos timbres mais ricos, aveludados e expressivos dentre os cantores brasileiros de seu registro, mas sua cavatina soou cautelosa, evitando os artifícios na região aguda que normalmente se escutam. Ainda que Camargo tenha segurado os andamentos da Orquestra Acadêmica de São Paulo para torná-los mais confortáveis (algo que também se percebeu na abertura da ópera), Giugliani chegou a apresentar desafinações na seção final do número, comprometendo o saldo. No restante do espetáculo, o barítono ficou mais à vontade dentro da partitura e pôde mostrar verve cômica e cumplicidade com a plateia.

Completando o elenco, Flavio Borges (Basilio, baixo) e Gabriela Bueno (Berta, mezzo) defenderam bem suas árias, e o coro masculino do Coral da Cidade de São Paulo também mostrou boa performance.

O espetáculo ainda terá três récitas, desta sexta (19) até domingo (21), com o elenco da estreia se apresentando apenas no sábado.

 

Fonte: O Globo

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