CRÍTICA | Destemido, Satyros humaniza o digital e faz história em A Arte de Encarar o Medo

A ARTE DE ENCARAR O MEDO
Ótimo ✪✪✪✪✪
Crítica por MIGUEL ARCANJO PRADO

“Estamos vivos porque estamos em movimento”. O verso do compositor uruguaio Jorge Drexler pode ser um bom ponto de partida para analisar a importância do espetáculo A Arte de Encarar o Medo, da Cia. de Teatro Os Satyros, peça que já nasce histórica.

Trata-se da primeira grande produção teatral brasileira em formato digital online com numeroso elenco de 17 intérpretes do Satyros, a partir de dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, e direção deste último.

Na montagem, que estreia para o público neste sábado (13), às 21h, e conta com sessões no aplicativo Zoom sextas e sábados, 21h, e domingo, 16h, com ingressos a R$ 20 e R$ 10 vendidos pelo Sympla, o medo da pandemia do novo coronavírus não paralisou por completo os artistas que se apresentam na tela.

Estes não só abraçaram o tema, mas o ressignificaram e o humanizaram, em uma obra potente, com alto potencial para fazer refletir e comover o espectador nesta quarentena.

O Satyros ainda reforça a importância da valorização e profissionalização do trabalho artístico ao cobrar ingresso para o espetáculo, afinal, brindam o público com uma obra de qualidade e que é uma verdadeira epifania dos tempos que vivemos. E que merece ser devidamente valorizada.

O Satyros Digital, novo braço online da companhia teatral que ainda tem o Satyros Cinema, traz para as redes a profícua experiência do grupo em fazer um teatro performativo e colaborativo, construído a partir das fragmentações das subjetividades de seus diversos integrantes, transformadas em linguagem estética pelo engenhoso diretor García Vázquez.

E, claro, dessa vez, traz para a tela dos computadores ou smartTVs a farta experiência do contato pessoal acumulado nos tempos pré-pandemia, já que o grupo costuma comportar-se no cotidiano como uma família.

O Satyros sempre foi próximo às novas tecnologias. Em vez de rechaçá-las ou demonizá-las, sempre buscou se integrar e descobrir novas possibilidades estéticas a partir delas. E foi vanguarda ao abordar, bem antes destes novos tempos, a imersão digital da humanidade, que foi definida pelo grupo como “humanidade ciborgue”, como na série de sete espetáculos em 2014 chamados E Se Fez a Humanidade Ciborgue em 7 Dias.

Contudo, mesmo altamente conectado, o Satyros está longe de ser um grupo robotizado. Muito pelo contrário, mergulha nas novas possibilidades tecnológicas como forma de ressaltar o que há de mais humano e poético em nós. Afinal, o grupo fundado há 31 anos por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez sabe muito bem o que é contato real e presença.

Não à toa, sua instalação na praça Roosevelt, duas décadas atrás, transformou por completo o local, antes um antro de perigo e violência, e que tornou-se, a partir de sua chegada, com seu bar e suas peças ousadas, um epicentro de ebulição artística no qual o efervescente festival cultural Satyrianas é o mais emblemático exemplo, com seus quatro dias e noites de arte ininterrupta.

O Satyros mudou não só a Roosevelt, mas foi pioneiro ao propor uma nova relação do paulistano com o centro de sua cidade, fazendo com que as pessoas se apropriassem — e gostassem — do espaço público, criando uma relação de pertencimento a este, sendo abre-alas para movimentos como a Virada Cultural ou a valorização do Baixo Augusta, que culminou no surgimento do primeiro grande bloco paulistano, o Acadêmicos do Baixo Augusta, marco do reflorescimento do Carnaval de rua da metrópole.

Não à toa, o fechamento de uma de suas sedes por conta da crise econômica atual, o Estação Satyros, local onde foram encenadas peças libertárias como Os 120 Dias de Sodoma, cultuada por mais de uma geração, tenha comovido tanta gente — o grupo ainda mantém a duras penas o Espaço dos Satyros Um e o Cine Bijou, que sonha reabrir assim que a pandemia passar.

Entretanto, diante da perda, o grupo optou por não mergulhar no lamurio. Arregaçou as mangas em teleconferências que uniram seus integrantes em suas respectivas residências, na tentativa de descobrirem, juntos, uma nova forma de fazer teatro para estes tempos loucos. “Fizemos essa peça para não enlouquecer, para os Satyros continuarem vivos”, diz em certo momento da peça o ator e dramaturgo Ivam Cabral.

Quem assiste ao espetáculo A Arte de Encarar o Medo percebe que o Satyros encontrou, sim, este novo formato, que não pretende suplantar o tradicional, mas colocar-se como um formato possível em tempos de distanciamento social ou mesmo após o fim das restrições.

Destemido, o Satyros cria uma nova linguagem cênica em A Arte de Encarar o Medo, que já se mostra interessantíssima e deve gerar continuidade de exploração pelo Satyros Digital, mesmo quando lotar teatros físicos volte a ser algo possível no Brasil pós-pandemia.

E toda equipe envolvida no processo do espetáculo merece nossos parabéns e aplausos caloroso, mesmo que agora de pé em nossas salas de casa. Há uma perceptível entrega de todos ao projeto, mesmo em período de abalo psicológico tão profundo para qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade. Que o diga os artistas. Portanto, criar uma nova arte em tal contexto é digno de louvor.

Assim, aqui é preciso colocar os nomes destes atores já históricos: Ivam Cabral, Eduardo Chagas, Nicole Puzzi, Ulrika Malmgren, Diego Ribeiro, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Marcelo Thomaz, Marcia Dailyn, Mariana França, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo, além do ator convidado César Siqueira e dos artistas mirins Nina Denobile Rodrigues e Pedro Lucas Alonso. É devido ainda acrescentar a orientação visual de Adriana Vaz e Rogério Romualdo, e os retratos à distância de Andre Stefano na equipe técnica do espetáculo.

Ao som de David Bowie em Space Oddity ou da marchinha carnavalesca As Águas Vão Rolar, a peça mostra um grupo de pessoas trancafiadas e isoladas por uma pandemia que já dura 5.555 dias. Na ficção futurista, que se agarra irremediavelmente à nossa realidade, o grupo passeia por situações de mortes e de desespero, mas também traz fôlego de vida e até situações bem humoradas, enquanto os personagens interagem com “pedaços digitais das pessoas que chegam até a mim”.

Como ao mostrar a relação de mães com seus filhos em interminável quarentena — muito bem desempenhada pelas atrizes Sabrina Denobile com a pequena Nina e Ju Alonso com pré-adolescente Pedro — ou ainda o rompante de sobrevivência e de fé no futuro, como quando Ivam Cabral canta Amanhã Será um Lindo Dia, de Guilherme Arantes, arrepiando a todos.

Eduardo Chagas, em uma das cenas, mostra a necessidade de se cultivar a própria paz em meio ao caos, enquanto que Gustavo Ferreira empresta seu corpo para condensar a vilania de quem faz política suja enquanto joga com vidas.

Diego Ribeiro encarna o desespero da solidão e necessidade de contato com outro, enquanto que Henrique Mello assume as neuroses da contaminação, fruto do isolamento. De Estocolmo, graças a um teatro que não se prende ao geográfico, a imponente atriz sueca Ulrika Malmgren mergulha em aparatos futurísticos, enquanto que, no bairro paulistano da Bela Vista, a diva Márcia Dailyn funde seu glamour a fatos históricos, recordando tempos que já se foram.

Ainda há poéticos encontros nas telas, como os dos atores Silvio Eduardo e César Siqueira, tentando lavar-se debaixo d’água do mal do mundo. Nicole Puzzi e Dominique Brand dão saltos vorazes no susto que é viver o novo cotidiano. E Fabio Penna e Marcelo Thomaz arriscam olhares para o que está lá fora, lugar proibido.

A peça ainda traz momentos divertidos, como o monólogo de Julia Bobrow, intensa na pele de uma desaforada personagem encastelada em seus privilégios alienantes. No começo, ao lado de Henrique Mello, Mariana França representa esse recorrente tutorial que necessitamos todos para aprender a lidar com as novas ferramentas comunicativas que se impuseram.

Todo esse time surge afinado e impressionantemente marcado pelo diretor Rodolfo García Vázquez e ao mesmo tempo divertindo-se à beça no jogo teatral. As transições de cenas ocorrem de forma fluída, levando o público a novas sensações. Com uma hora de duração, o espetáculo parece passar em ritmo veloz e, ao fim, deixa gosto de quero mais.

Ao assistir ao espetáculo, o público tem a oportunidade de fazer parte de um verdadeiro ritual, de estar em comunhão não só com os artistas como também com os outros espectadores em tempo real, fazendo todos recordarem o sentimento de se estar em uma sala teatral, seja no palco ou nas poltronas, espaço este agora transferido para a TV da sala de casa, para a tela do notebook ou do celular. Há, inclusive, a possibilidade de papo pós-peça com os artistas, além de cumprimentá-los pelo desempenho. Na sessão de pré-estreia vista por este crítico, o momento de aplauso online deixou a todos comovidos.

A Arte de Encarar o Medo mostra um destemido Satyros, se desafiando e se propondo a olhar o novo sem preconceitos ou pudores tradicionalistas do que seria ou não teatro. Afinal, a realidade nos atropelou a todos. E era preciso reagir. E, ao mergulhar neste processo, o grupo simplesmente entra para a história das artes no Brasil, ao optar pela decisão de seguir em frente, do jeito que for, na ânsia por fazer as artes cênicas sobreviverem. Com A Arte de Encarar o Medo, o Satyros terminou por criar uma nova linguagem artística: viva, porque está em movimento, como canta o compositor uruguaio Jorge Drexler.

A ARTE DE ENCARAR O MEDO
Ótimo ✪✪✪✪✪
Crítica por MIGUEL ARCANJO PRADO

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Fonte: Blog do Arcanjo

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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