Crítica: As Bruxas de Salém do Satyros cria terror potente com atores talentosos e enfrenta o ódio no Brasil

As Bruxas de Salém
Avaliação: Ótimo
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

O teatro é feito de sonhos e também de pesadelos. E, nisso, seu motor crucial costuma ser uma juventude transformadora e contestatória. Afinal, a vanguarda sempre foi incômoda. A Cia. de Teatro Os Satyros sabe disso muito bem desde sua fundação, em 1989, por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, idealizadores da nova peça do grupo, As Bruxas de Salém.

O grupo jamais ficou preso ao facilmente digerível, mas, se notabilizou na história do teatro brasileiro e mundial — são mais de 100 prêmios — justamente por questionar o status quo, denunciar a sanha insaciável e perversão dos poderosos e mais, apresentar constantemente um jovem conjunto de atores ao mercado dramatúrgico. E, como trunfo, o Satyros mantém diálogo intenso e constante com o espaço que os abriga, no caso, a urbe chamada São Paulo, em especial a Praça Roosevelt, onde fica sua sede há mais de 20 anos.

Outra característica do Satyros é estar atento ao zeitgeist, ou seja, o espírito de seu tempo. Isso, obviamente, é fruto da percepção aguçada de sua sintonizada dupla criadora, Cabral e Vázquez, e de uma convivência com o novo, com o aqui e agora, o que faz do Satyros um herdeiro legítimo do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, com seu teatro quântico sempre conectado ao presente-passado-futuro.

O Satyros se notabiliza por fazer muito com pouco. O grupo mantém o estilo underground nas peças que encena em seu Espaço dos Satyros, na Praça Roosevelt, centro de São Paulo — na qual a presença de seu efervescente teatro nas últimas duas décadas provocou uma pequena revolução de ocupação do espaço público. Entretanto, ser under não significa pobreza estética, muito pelo contrário.

As peças do Satyros costumam ser opulentas em possíveis significados, fruto de encenação poética sofisticada pelo habilidoso talento do diretor Rodolfo García Vázquez. O que ele consegue fazer em uma sala sem coxias é assombroso.

Esta grande introdução é para dizer que tudo isso fica evidente na nova peça do grupo, As Bruxas de Salém, sua versão para o texto clássico do dramaturgo nova-iorquino Arthur Miller (1915-2005), aquele que já era uma lenda na Broadway quando se casou com ninguém menos com Marilyn Monroe. Mas, isso é outra história.

A encenação de Rodolfo García Vázquez para o texto de Miller faz As Bruxas de Salém conversar com o Brasil de hoje. Ele já dá o tom de olhos nos olhos quando o público entra na sala e passa por um aterrorizante corredor formado pelos personagens de Salém. A sensação é que já estamos a caminho de uma possível forca.

Em seu prólogo e epílogo, em monólogos defendidos muito bem pelo versátil André Lu, a encenação de Vázquez reforça que os conflitos do texto de Miller seguem em nosso cotidiano séculos depois da história apresentada no espetáculo, porque são inerentes à humanidade. E, que pelo jeito, se repetirão muitas vezes.

Ao falar de uma pequena cidade norte-americana no século 17, Salém, que começa a perseguir suas mulheres após jovens serem vistas em um ritual no meio da floresta, o espectador brasileiro do século 21 não consegue fugir da associação ao recente fenômeno do ódio, da censura e do “caça às bruxas” na política brasileira, representado pelos quatro anos de poder bolsonarista.

A tentativa de golpe contra a democracia em 8 de janeiro de 2023, com a destruição dos prédios dos 3 poderes em Brasília por uma turba raivosa, também é evocada em uma das mais potentes cenas de As Bruxas de Salém do Satyros.

Vázquez ainda evidencia o ridículo do fanatismo, seja qual ele for, ao recriar a cena dos celulares que se comunicam com seres extraterrestres que viraram memes nas redes sociais. O público entende e ri.

Se na época em que o texto foi escrito a associação imediata de releitura para o caça às bruxas foi o Macarthismo nos Estados Unidos, que perseguiu os comunistas norte-americanos no contexto da Guerra Fria com a extinta União Soviética, a releitura brasileira de 2023 é o bolsonarismo.

Ainda são chagas abertas as mortes provocadas pela relativização da pandemia, a perseguição à cultura e o estímulo do ódio à ciência e aos artistas com a máquina de distribuição constante de fake news aos convertidos — que segue a todo vapor e deve provocar caos nas próximas eleições.

Arthur Miller imprimiu universalidade ao seu texto ao retratar a maldade humana e as manipulações da opinião pública em relação ao que é ou não verdade.

Por isso, As Bruxas de Salém segue mais atual que nunca, como é dado aos clássicos. Não à toa, além desta nova encenação do Satyros no Brasil, o texto também faz bastante sucesso na atual temporada de Londres, montado pelo Teatro Nacional britânico. Por aqui, o dramaturgismo foi feito por Luís Holiver e Sabrina Denobile.

As Bruxas de Salém nos expõe os ciúmes mesquinhos deste bicho chamado gente, capaz de usar qualquer artimanha de poder para inferiorizar ou, por que não, dizimar quem se encontra em seu caminho. E um sistema corrupto e fanático é o melhor meio para concretizar essa insaciável sanha.

Elenco talentoso
Este crítico não poderia deixar de dizer que As Bruxas de Salém do Satyros reúne um talentoso elenco de 33 atores vibram com perfeição no compasso do diretor Rodolfo García Vázquez.

Dividida em dois atos, com um primeiro ato mais vigoroso e ritmado que o segundo, que se arrasta na perplexidade presente nas manipulações da cena de julgamento, a montagem conta com um dos elencos mais coesos e entregues que o grupo já teve.

No protagonismo, estão o vigoroso Henrique de Mello, como John Proctor, a serena Elisa Barboza, como sua esposa, Elizabeth, e a intensa Julia Bobrow, na pele de Abigail, uma ardilosa ex-amante de Proctor que vê na rede injusta de acusações uma possibilidade de vingança.

Muito bem escalado, o triângulo protagonista demonstra maturidade cênica. De um lado, temos a exacerbação da manipulação representada na construção de tintas fortes de Bobrow, de outro, a sutileza de quem conhece a verdade e se vê estupefata com a rede de mentiras, brilhantemente presente no olhar desolado de Barboza, em uma das mais sofisticadas construções de personagem desta temporada. No meio desta guerra, Mello defende com bravura a sisudez de um homem que vê sua autoridade patriarcal se esvair diante das manipulações e acusações e se recusa ver seu caráter esvanecer.

Outro destaque é o grande núcleo de atores negros, que impõem outro ponto de vista para a cena, criando uma tensão étnica que dialoga ainda mais com o Brasil contemporâneo, além de construir imagens de altíssima beleza poética e sonora.

A cena em que o artista haitiano Daj canta — com sua vigorosa voz — seguido do grupo de atores negros em coro é um marco de beleza cênica na história do Satyros.

Mariana França, como Tituba, se destaca neste conjunto de artistas e faz um monólogo contundente no primeiro ato que demonstra a grande atriz que se tornou. Jéssica de Aquino também brilha como a pobre e atormentada Sarah.

Em outra ponta, que dialoga intensamente com nosso Brasil, Gustavo Ferreira, como Reverendo Parris, e Diego Ribeiro, como Reverendo Hale, constroem as artimanhas de uma falsa religião que cega os homens, submersa nas intrigas mundanas pelo poder. Ambos expõem as caricaturas destes tipos de personagens tão comuns em nosso cotidiano.

No grupo das jovens, Anna Paula Kuller, em sua construção da titubeante Mary, demonstra firmeza e talento, assim como Aline Barbosa, na pele da jovem supostamente possuída por forças malignas que remete à lendária atuação de Linda Blair no filme O Exorcista.

Outro destaque que precisa ser mencionado é Marcia Dailyn, como a matriarca que vê sua cidade se perder no estímulo do ódio e já não tem mais forças para comprar qualquer discurso, seja o de luta ou da resistência. As lágrimas que a atriz deixa elegantemente escorrer em seu rosto são dilacerantes.

Alex de Felix e, sobretudo, Eduardo Chagas, oferecem o contraponto de maturidade ao numeroso elenco jovem. Também é preciso lembrar que Sabrina Denobile, outra atriz talentosa do Satyros, constrói com esmero sua amarga Ann.

Ainda estão em cena, altamente presentes e fundamentais mesmo quando não detém o poder da palavra dita, Alana Carrer, Alessandra Nassi, Bruno de Paula, Cristian Silva, Diogo Silva, Felipe Estevão, Georgia Briano, Guilherme Andrade, Heyde Sayama, Ícaro Gimenes, Jéssica de Aquino, Karina Bastos, Laura Molinari, Luís Holiver, Mariana Costa, Morena Marconi, Pri Maggrih, Suzana Horácio e Vitor Lins.

A produção é assinada por Diego Ribeiro, Elisa Barboza, Gabriel Mello e Maiara Cicutt. No time criativo, Flávio Duarte constrói uma iluminação repleta de camadas e atmosferas que, unida ao figurino de Elisa Barboza e Marcia Dailyn, fazem o público viajar no tempo, diante da absolutamente sutil cenografia de Thiago Capella.

As Bruxas de Salém é um espetáculo imperdível, que desperta no público a reflexão sobre como mentiras são habilidosamente construídas, utilizando a falácia de uma ‘verdade’ forjada. Inteligente é desconfiar, duvidar e não seguir a manada, por mais que isso custe um alto preço.

 

Fonte: Blog do Arcanjo 

Post criado 569

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo