O espetáculo Peça para Salvar o Mundo, da companhia Os Satyros, propõe uma radical reconfiguração da visualidade e da presença cênica no teatro contemporâneo. Dirigida por Rodolfo García Vázquez, com assistência de Fabrício Rodrigues e Renatto Moraes, e idealizada em parceria com Ivam Cabral, a obra é mais que um experimento artístico: é um manifesto sensorial sobre a coexistência entre arte, tecnologia e humanidade em tempos de crise planetária.
No lugar dos corpos de carne e osso que habitualmente ocupam o palco, o público encontra um avatar mutante, híbrido e multifacetado, que interage com a plateia em tempo real. Manipulado à distância pela atriz Mariana Leme e pelo designer de IA generativa Thiago Capella, esse avatar é, simultaneamente, robô, mulher, criança, homem, velho, negro, branco – uma entidade fluida que ressignifica os arquétipos visuais do teatro tradicional. Essa construção imagética em constante transformação cria uma visualidade expandida, onde o corpo é digital, mas ainda impregnado de presença, sensibilidade e memória.
A cenografia digital – composta por fundos mutáveis e projeções sensoriais – sustenta com coerência a linguagem do espetáculo, convertendo o espaço teatral em uma interface entre o real e o virtual. A ausência física dos atores não anula a expressividade; ao contrário, a desloca para um campo novo de subjetividade: aquele em que a emoção é filtrada e amplificada por tecnologia. O avatar aprende com o público, adapta-se a ele e devolve reflexões que tocam o íntimo, revelando uma vulnerabilidade que desafia a suposta frieza das máquinas.
Mariana Leme atua como uma “atriz ciborgue”, manipulando expressões, gestos e entonações vocais do avatar em tempo real. Sua interpretação não está apenas na voz ou na técnica de atuação remota — está no domínio da fisicalidade ausente, na capacidade de projetar emoções por meio de um corpo virtual. Ela não se apresenta, mas se distribui pela cena, diluída na figura digital. Sua afirmação de que “meu corpo se expande” revela uma dimensão performativa que não depende da presença física, mas da potência afetiva que ela mobiliza. A conexão com o público, mediada por tecnologia, torna-se paradoxalmente mais íntima, como se a mediação virtual removesse barreiras sociais típicas do teatro presencial e facilitasse a exposição de vulnerabilidades.
Thiago Capella, por sua vez, atua como co-performer, embora seu papel esteja ancorado na técnica. Seu trabalho de design de IA generativa vai muito além da programação: ele manipula, em tempo real, os recursos que moldam o avatar — expressão facial, movimentação, transições entre identidades visuais e resposta comportamental da máquina. Seu domínio técnico é, na verdade, profundamente teatral. Ele precisa antecipar a lógica da cena, captar nuances do diálogo com o público e ajustar, com precisão quase coreográfica, os tempos e ritmos do avatar.
Juntos, Leme e Capella não interpretam papéis convencionais; eles performam um sistema vivo. A atuação se dá na relação, na mediação, na escuta recíproca entre atriz, designer, avatar e plateia. É uma coautoria em tempo real que demanda extrema sintonia e improvisação técnica e afetiva. A expressividade do avatar não existe sem o refinamento sensível de Mariana nem sem a arquitetura algorítmica de Thiago. Ambos tornam visível — ou, mais precisamente, perceptível — uma nova forma de presença cênica: a presença distribuída.
A dramaturgia não é um roteiro fechado, mas uma arquitetura em aberto que se transforma a cada apresentação — moldada pelas interações em tempo real entre o avatar e o público. Esse dispositivo dramatúrgico, baseado em escuta e adaptação contínua, rompe com a ideia tradicional de uma dramaturgia linear e autoral, propondo em seu lugar uma criação partilhada, sensível às respostas humanas e marcada pela imprevisibilidade.
No centro dessa experiência está uma pergunta fundamental: como a generosidade pode ajudar a salvar o mundo? A peça não oferece respostas prontas. Ela propõe uma investigação afetiva, em que o avatar — espécie de “oráculo digital” — convida os espectadores a partilhar experiências, memórias e desejos. Esse movimento estabelece uma dramaturgia dialógica, onde a palavra do outro (o público) passa a integrar o corpo da narrativa em tempo real. O texto, portanto, é tão processual quanto relacional.
A generosidade, nesse contexto, deixa de ser apenas um tema e se torna método: é o ato de escuta, de abertura ao outro, de entrega ao inesperado. Ao ceder parte da autoria ao público, os criadores do espetáculo (Ivam Cabral, Rodolfo García Vázquez, Mariana Leme e Thiago Capella) praticam a generosidade dramatúrgica — confiando que da vulnerabilidade coletiva pode emergir algo mais potente do que a soma das individualidades.
Esse princípio se conecta com o uso da inteligência artificial e do machine learning como tecnologias abertas à interferência humana. O avatar aprende, modifica sua atuação, suas expressões, seu discurso — e, nesse processo, espelha a plasticidade da própria dramaturgia, que se torna um organismo vivo. A inteligência da máquina não está, aqui, em sua capacidade de calcular, mas de sentir com o outro, de (re)agir ao humano.
O resultado é um teatro de escuta — e de aposta ética. Em tempos marcados pela violência algorítmica, polarizações e desumanização digital, Peça para Salvar o Mundo oferece uma espécie de contraprogramação sensível. Ao perguntar sobre generosidade, a obra tensiona os limites da arte tecnológica e reinstaura o teatro como espaço de comunhão e possibilidade transformadora. A generosidade torna-se, assim, não apenas um tema de investigação, mas um gesto político e estético.
A pesquisa iniciada pelos Satyros em 2009 atinge aqui um novo patamar. Se antes a tecnopresença era experimentada via celulares ou durante o teatro digital da pandemia, agora ela se materializa num avatar que sintetiza corpo, código e afeto. A visualidade do espetáculo torna-se assim uma extensão da própria lógica ciborgue: instável, rizomática, miscigenada. O avatar não é apenas representação – ele é performance, presença e questionamento em si.
Peça para Salvar o Mundo estabelece um diálogo direto e profundo com o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, atualizado agora como “Manifesto Tecnofágico”. Assim como o texto fundacional do modernismo brasileiro propunha devorar criticamente as influências europeias para transformá-las em expressão autenticamente nacional, o novo manifesto dos Satyros propõe a devoração crítica das tecnologias contemporâneas — especialmente aquelas que moldam o imaginário digital e algorítmico globalizado.
Essa relação não é meramente estética ou simbólica: ela é estrutural. O teatro ciborgue que Os Satyros vêm desenvolvendo há mais de uma década materializa, em cena, o princípio antropofágico da transmutação. A tecnologia — que poderia representar um risco de homogeneização cultural ou de submissão ao tecnocapitalismo — é, aqui, “comida”, ressignificada e reinserida em uma lógica de criação mestiça, afetiva, indisciplinada. A IA, os sensores, os avatares e os protocolos computacionais são submetidos a um gesto artístico que desafia sua lógica instrumental, e que afirma a potência criadora do corpo, da emoção e da presença teatral.
Ao mesmo tempo, o Manifesto Tecnofágico reafirma a ideia de que “toda técnica é cosmológica” e que “nenhuma tecnologia é neutra”. Essa afirmação remete ao caráter crítico e político da antropofagia modernista: não se trata de simplesmente aceitar ou rejeitar a tecnologia, mas de tensioná-la a partir de uma visão situada, brasileira, periférica e sensível. O “robô tupiniquim”, como dizem, carrega em si as contradições históricas do Brasil — e é justamente por isso que pode gerar uma tecnoarte viva, com potencial de reencantamento.
O teatro d’Os Satyros, nesse sentido, encarna uma nova forma de antropofagia: não apenas cultural, mas ontológica. Ao hibridizar corpos e códigos, algoritmos e afetos, o grupo propõe uma insurgência poética contra a lógica binária das máquinas. Trata-se de transformar o palco em um campo de luta simbólica — onde se devoram, distorcem, subvertem e reinventam as formas de existência.
Esse gesto antropofágico se alinha a um dos princípios centrais do teatro do grupo: o de que o palco é laboratório de futuros. Mas, como nos alertam, esse futuro não é idealizado nem abstrato — ele é mestiço, glitchado, inacabado. É o futuro possível quando se faz da arte um exercício de devoração ativa do presente.
Se os algoritmos querem prever, a arte — especialmente a arte feita com e contra as tecnologias — quer perturbar. E Peça para Salvar o Mundo o faz com brilhantismo: não nos entrega o mundo salvo, mas nos convoca a imaginar futuros onde o humano não será superado pelas máquinas, mas reinventado com elas, em insurgência e poesia.
No coração do espetáculo, um gesto cênico de poderosa simplicidade traduz a proposta radical da encenação: um microfone aberto, posicionado no centro do palco, convida os espectadores a se manifestarem, a partilharem suas histórias, desejos, medos e pedidos. Mais do que um recurso técnico ou dramatúrgico, esse microfone simboliza a devolução da palavra ao público — um dispositivo de escuta ativa e participação real em uma cena que se recusa à passividade.
Essa escolha instala uma dramaturgia da vulnerabilidade. O espaço do palco, tradicionalmente reservado à representação, é fraturado para dar lugar ao testemunho. Ao se aproximar do microfone, o espectador deixa de ser apenas receptor para se tornar coautor da experiência. Seu gesto, seu timbre, sua narrativa interferem diretamente na construção da cena e, mais ainda, na aprendizagem do avatar, que se alimenta dessas interações para transformar sua performance em tempo real.
O microfone aberto materializa, também, a pergunta central do espetáculo: o que significa pedir? E, mais especificamente: como pedir por um mundo melhor, e a quem? Ao se dirigir ao avatar, que assume feições humanas e não-humanas, o espectador confronta uma presença híbrida — entre a máquina e a empatia — que espelha os limites da comunicação contemporânea. Mas, ao mesmo tempo, o simples ato de falar num palco, de expressar um desejo diante de uma audiência, reinscreve no teatro sua função ancestral: a de ser lugar de escuta coletiva, de rito compartilhado.
Nesse sentido, o microfone não é apenas um objeto em cena — é uma passagem entre mundos. Um ponto de contato entre a singularidade de cada espectador e a estrutura tecnológica que organiza o espetáculo. Ele representa a possibilidade de romper com o silêncio imposto pelo excesso de mediações digitais, e reafirma o teatro como espaço de presença e transformação.
A polissemia do título sintetiza o eixo conceitual do espetáculo. De um lado, ele afirma o poder da arte — a peça — como meio de questionamento, criação de sentido e ativação coletiva. De outro, aponta para a urgência de um pedido humano, íntimo, quase desesperado, diante do colapso contemporâneo. A peça é o pedido. E o pedido é a peça. Ambas se confundem, tornando-se inseparáveis.
Essa operação semântica transforma o título em um enunciado performativo: ao lê-lo, o espectador já é convocado, antes mesmo da encenação, a se implicar na ação proposta. Não se trata apenas de assistir passivamente, mas de participar de uma experiência que, como o próprio espetáculo, é moldada por interações, desejos e perguntas em aberto. Quem pede? Para quem se pede? Que mundo é esse a ser salvo?
Mais do que um jogo de palavras, a obra torna-se uma síntese poética da proposta ciborgue dos Satyros: fundir linguagem, tecnologia e afeto em uma dramaturgia que interroga o presente e projeta futuros possíveis. Nesse sentido, o título funciona como uma chave de leitura, mas também como um convite à ação: peça — atue, deseje, intervenha — para salvar o mundo.
Bob Sousa é fotógrafo, pesquisador, crítico e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp, onde tem Mestrado em Artes, e jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes e do Prêmio Arcanjo de Cultura
Fonte: Bob Sousa