Quando penso que a narrativa já se aproxima dos créditos finais, a vida encaixa uma cena extra, inesperada, como quem diz: “Ainda não acabou — repara melhor.” Foi assim com a partida de meus pais, cada um marcando a estreia de algo que, àquelas alturas, eu nem desconfiava que seria maior do que a dor do luto.
Meu pai se despediu em 1999, enquanto transformávamos um prédio arruinado na Praça Roosevelt no Espaço dos Satyros; minha mãe partiu em 2009, justo no ano em que a SP Escola de Teatro se anunciava ao mundo. Anos depois, quando cheguei aos sessenta anos, perdi Chico e Cacilda, companheiros de quatro patas que pareciam guardar na pelagem o mapa do afeto. Ali, eu tive certeza, absoluta mesmo, de que nunca mais eu teria um cachorro na minha vida. Foi então que Guadalupe entrou em cena — uma explosão de energia cor-de-mel rasgando a tela do cotidiano.
Guadalupe não nasceu para a vitrine: prefere lama a colônia, poça a passarela. Visto-a de rosa, ela escolhe marrom; trago-a perfumada, ela devolve cheiro de terra molhada. O ápice foi quando saiu de casa fantasiada de abelhinha — asas de tule, antenas frágeis — e voltou metamorfoseada num pequeno monstro pantanoso. A fantasia, claro, foi para o lixo, mas a lição ficou: liberdade não aceita figurino.
Essa liberdade diária me educa. Se depender de Guadalupe, guia só serve para apontar constelações; no parque, a correia é fronteira inaceitável. Ela corre, e eu reaprendo a respirar; ela fareja, e eu descubro silêncios enterrados nas raízes das árvores. Quando penso em me recolher à velha solidão, ela me empurra porta afora — e a solidão vira solitude, intervalo fértil entre um latido e outro.
A cada dia observo sua personalidade ganhar contornos. Leva sustos homéricos de caixas vazias, sacolas infladas, sacos pretos de lixo: ameaça latir, depois chora como quem encara o próprio abismo. Então me agacho, apresento-lhe a “terrível” embalagem, converso baixinho — e nada: o medo subsiste, talvez eternamente. Aceito ser seu intérprete diante desses monstros de celulose. No fundo, há ternura nesse pacto: ela confia em minha tradução do mundo; eu confio que ela o possa redesenhar numa chave selvagem que eu havia esquecido.
Há, sobretudo, o amor sem cláusulas nem parênteses: o rabo que balança antes mesmo de eu abrir a porta, a cabeça que encontra meu colo quando a dúvida faz barulho demais. Dizem que os deuses se disfarçam de animais para visitar os mortais. Se for verdade, o meu veste lama e responde ao chamado com um latido.
Guadalupe, esse pequeno oráculo de patas sujas, é um presságio de que grandes acontecimentos, importantes e fundamentais se avizinham. Algo está acontecendo e ela é um divisor de águas. Tenho que prestar atenção nisso. Afinal, a vida nos ensina coisas e a gente precisa prestar muita atenção nela.