SILÊNCIO POR AQUI | Colecionador de quietudes: Entre o recolhimento e a escuta

Tenho passado a maior parte dos últimos tempos num território limítrofe entre o recolhimento e a escuta. Não há melancolia nem júbilo extremos—apenas essa pausa que se instala quando a voz se cansa de praticar acrobacias e decide se sentar no próprio corpo para descobri-lo. Sempre falei demais. Afinal, meu ofício é traficar palavras, emprestá-las à figuras imaginárias e ver como ecoam sob a luz do palco. Agora descubro que o silêncio também é um papel e que me exige uma entrega rara. Calar não é omitir, é ampliar.

As noites se tornaram laboratórios de ausências. Desligo televisão, rádio, notificações. Deixo que o ruído urbano venha apenas como uma maré inevitável—motores, buzinas, o grito perdido de alguém na calçada. Em vez de competir com esses sons, resolvo acolhê-los como parte de uma partitura que não preciso reger. Aos poucos, vou percebendo que o silêncio é uma moldura que permite distinguir o som: nota clara, nota grave, respiração do mundo.

Aos poucos, também, passo a notar que o tempo possui dupla cidadania. Há o tempo dos relógios, metódico, ponteiro que bate ponto. E há o tempo interno, anfíbio, que nada em águas que só eu reconheço. Quando declaro “são três da manhã”, falo de um contingente de segundos que se alinham numa cadência inventada. Mas quando sinto “é profundo”, me refiro a um acontecimento que não caberia em nenhum mostrador. Viver sozinho me ensina a liturgia desse segundo tempo: posso dilatar a madrugada até que se torne continente, ou concentrar a tarde inteira no tilintar de uma colher batendo na xícara.

O outono ajuda nesse aprendizado. Há algo na queda lenta das folhas que sugere moderação, como se a natureza afinasse sua orquestra para o grande intervalo do inverno. Nesse ensaio das árvores, identifico um convite: me despir das vozes que já não preciso usar, deixá-las descansar no chão para, quem sabe, encontrarem outro uso quando o sol voltar a aquecer. Renascer não implica bradar novidade. Às vezes, basta chegar inteiro e mudo, pronto para ouvir o primeiro diálogo das flores.

Lembro então do deus que devora os próprios filhos, e de seu irmão menor, que só aparece quando a porta se entreabre. Talvez ambos morem em mim: um me cobra prazos; o outro, epifanias. Quando um me apressa, recito uma fala qualquer, antiga, e sigo o caminho. Quando o outro me toca o ombro, respiro—como se cada pulmão pudesse ser um sino me chamando para um culto interior. No choque de ambos, descubro uma terceira via: o tempo artesanato, feito à mão, demora de quem pacientemente tece o dia que ainda não existia antes de acordar.

Há quem diga que a morte é o derradeiro silêncio, mas começo a desconfiar de que seja apenas mudança de frequência. Como no teatro, muitas vezes as luzes se apagam para que a cena seguinte aconteça. E se há intervalo, também há expectativa: o público sussurra, rearranja a postura, reformula suas ideias. Entre o apagar e acender, palpita a promessa—vida, ainda vida, sempre vida.

Por isso sigo colecionando quietudes, como quem guarda sementes para a primavera que virá. Talvez eu me apresente a ela com voz mínima, ou talvez nem precise falar. Porque, afinal, tudo é silêncio por aqui.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

Um comentário sobre “SILÊNCIO POR AQUI | Colecionador de quietudes: Entre o recolhimento e a escuta

  1. Que lindo esse silêncio. Eu li, minha mente aqueceu mas o silêncio lá dentro se manifestou com alegria e calma. Um texto terapêutico!

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