CINE RESISTÊNCIA | O movimento de retomada dos cinemas de rua

Anos depois de trabalhar na televisão, Carlos Donaldo Costa decidiu abrir uma produtora de vídeos. Com três estúdios para gravação e testes de comerciais, o local recebia, desde 2012, até 300 pessoas diariamente. Mas então veio a pandemia, em março de 2020. “Tudo se tornou online e mudou de repente. Fiquei um ano e meio na dúvida sobre o que fazer. Em 2022, tive a ideia de construir um cinema, o Cine LT3, e o inaugurei em agosto”, conta.

Autodenominado “um cinema de bairro como antigamente”, o espaço em Perdizes, na zona oeste da capital paulista, tem apenas 35 lugares, com poltronas de meio século que vieram de uma sala desativada em Franca (SP). A atmosfera retrô e nostálgica, porém, é contrastada por equipamentos tecnológicos, como um projetor digital 4K e um sistema de som 7.2, além de recursos de acessibilidade para cadeirantes.

O proprietário do Cine LT3 diz que os espectadores são, principalmente, moradores da região, cinéfilos e pessoas que conheceram seu novo projeto pela mídia. “Achava que o público apareceria espontaneamente, logo após a inauguração. Mas esse é um trabalho de formiguinha, de mostrar que trazemos bons filmes, num circuito mais cultural e alternativo, que não concorre com streamings e blockbusters. Ao apresentarmos produções de arte e nacionais [como Marte Um e Carvão, ambos de 2022], fortalecemos a cultura do cinema”, destaca Costa, que oferece três sessões diárias, além de cinedebates quinzenais entre público, produção e direção.

Inaugurado em 2022, o Cine LT3 fica em Perdizes, zona oeste da capital, e se autodenomina “um cinema de bairro como antigamente”

O LT3 faz parte de um movimento de retomada do cinema de rua na cidade de São Paulo que, segundo Costa, acontece mais por um ideal e por amor à sétima arte do que por um retorno financeiro. Outro empreendimento do gênero, inaugurado em julho do ano passado, é o Cineclube Cortina, que mescla sua programação audiovisual com shows, festas, restaurante e bar. O local, erguido onde funcionava um estacionamento na Praça da República, região central, prioriza filmes nacionais, clássicos, títulos fora do circuito comercial e mostras temáticas. Tudo isso, visto pelos espectadores em 80 espreguiçadeiras de madeira e tecido.

“Os cinemas de rua estão muito ligados à sociabilidade, à formação de cinéfilos e ao (re)descobrimento do cinema nacional e/ou independente. São uma alternativa ao circuito hegemônico, que está presente, sobretudo, nos shoppings. O convívio social do jovem hoje é digital, e a sociabilidade do cinema também mudou. Por isso, acho interessantes esses movimentos que entendem que exibir um filme, por si só, já não basta”, avalia a jornalista e pesquisadora Ana Paula Sousa, professora de cinema e audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e autora do recém-lançado O cinema que não se vê: a guerra política por trás da produção de filmes brasileiros no século XXI (Fino Traço, 2023). Desde 2016, ela também coordena o Fórum Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

 

RENASCIDO NA PRAÇA
A cidade de São Paulo concentra a maioria de seus cinemas de rua na região central, na Avenida Paulista e imediações, e na zona oeste. São locais como o Petra Belas Artes, o Espaço Itaú de Cinema (Augusta), o Cine Marquise, o CineSesc, a Cinesala e o Reserva Cultural (batizado inicialmente de Cine Gazeta, cuja inauguração, em 1966, contou até com a presença da atriz italiana Sophia Loren). Pelo estado, há projetos com propostas semelhantes em Santos (Cine Arte Posto 4) e Campinas (Espaço Cultural Casa do Lago), entre outros municípios.

Há também muitos outros exemplos de cinemas de rua (ou de galeria) que fizeram parte do patrimônio histórico e arquitetônico da capital paulista, mas que fecharam nos últimos anos, como: Studio Alvorada, Cine Astor, Gemini, Top Cine, Art Palácio, Metrópole, Marrocos, Copan, Paissandu e Bijou. Este último, porém, renasceu em janeiro de 2022 como Cine Satyros Bijou, na Praça Roosevelt, no Centro. O lugar havia funcionado como cinema entre 1962 e 1996, e ultimamente abrigava uma escola de teatro. “Em 2019, soubemos que a escola sairia de lá e que o local poderia virar uma igreja ou um bar-balada. Foi aí que a gente se intrometeu. Conseguimos o apoio de pessoas importantes, como a atriz Patricia Pillar – cujo nome batiza a sala. São mais de 80 lugares, com as poltronas vermelhas originais, todas restauradas”, afirma Ivam Cabral, um dos fundadores da companhia teatral Os Satyros e administrador do Satyros Bijou, ao lado do também dramaturgo e diretor Rodolfo García Vázquez.

Durante a ditadura militar, o então proprietário do Cine Bijou, Francisco Coelho, anunciava filmes clássicos na programação, mas exibia produções censuradas pelo regime. “Ele foi um grande revolucionário. Como forma de homenagear a resistência naquela fase, e também o trabalho da Patricia, passamos na sessão inaugural Zuzu Angel (2006). Aliás, privilegiamos o cinema nacional em 70% da nossa programação. O restante são longas estrangeiros, de arte, inéditos e aqueles que não chegam ao circuito comercial”, explica Cabral, cuja expertise no audiovisual começou em 2014, com a produtora Satyros Cinema e a realização de filmes como A Filosofia na Alcova (2017), detentor do recorde de filme brasileiro em cartaz por mais tempo no país.

Tradicional cinema de rua de SP, o Cine Bijou reabriu em janeiro de 2022 como Cine Satyros Bijou, na Praça Roosevelt, centro da cidade

O Satyros Bijou, segundo o novo proprietário, busca oferecer ao público, para além das exibições, uma experiência coletiva. “Queremos que a ida ao cinema seja de conversa e de troca. Os cinéfilos, em geral, pensam muito, falam pouco e quase não têm lugares de encontro – são redutos solitários. Aqui, olhamos nos olhos do espectador e dizemos: ‘Seja bem-vindo(a)!’, ‘Boa sessão!’. Buscamos uma comunicação mais informal e humana que a vivenciada em uma sala comercial”, destaca.

Na visão de Cabral, o cinema é um espaço de aprendizado, reflexão e celebração. “Ele concentra os atributos que nós, cidadãos, precisamos para viver em comunidade e sociedade. E os cinemas de rua, particularmente, guardam tradições, histórias e memórias. Preservá-los, portanto, é uma questão coletiva que deveria ser garantida pelo poder público. O Centro – que até os anos 1990 era o mediador de toda a cultura da cidade – ainda tem muitos lugares como esse, que podem e devem ser recuperados”, analisa o administrador do Satyros Bijou.

 

PERDA E PERSISTÊNCIA
Inaugurado em 1993, o Espaço Itaú de Cinema na Rua Augusta é um dos que resistem bravamente na região. Em fevereiro, porém, seu anexo do outro lado da rua (com duas salas e capacidade para cerca de 120 pessoas) fechou as portas. O local começou a ser ocupado como cinema em 1947, pelo Cine Majestic, e a última das 93 mil sessões exibidas no anexo, em fevereiro passado, foi o documentário A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi, sobre a resistência do povo Yanomami. O terreno, que ajudou a revitalizar os arredores há três décadas, foi vendido para uma incorporadora e deve virar um edifício residencial. A proprietária do Café Fellini, instalado no anexo desde 1995, chegou a criar um abaixo-assinado (que reuniu cerca de 50 mil assinaturas) contra a demolição do imóvel.

Apesar dessa perda, o Espaço Itaú Augusta mantém suas três maiores salas no endereço principal. Na militância pelos cinemas de rua, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza, o diretor de programação da rede, Adhemar Oliveira, acredita que as salas de cinema migraram para os shoppings por um movimento de insegurança e de medo da violência, numa sociedade gradeada. “O cinema é um elemento efetivo do tecido urbano, da valorização da rua. Não é apenas um lugar onde se veem filmes, mas um epicentro que movimenta também as quadras ao redor, que eleva o status de uma rua. Além disso, o cinema de rua está ancorado em ver a realidade que o cerca”, observa.

Espaço Itaú de Cinema Augusta reúne três salas; anexo do outro lado da rua foi fechado em fevereiro

De acordo com Oliveira, que também é sócio da Cinesala (aberta em 1962), as cidades – e os cinemas de rua – precisam de vias mais seguras, policiamento, educação, convivência, distribuição de renda, investimentos em imóveis (para que não se deteriorem) e, principalmente, a presença e a circulação de pessoas contra uma arquitetura do abandono.

Para Rodrigo Gerace, doutor em cinema pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e assistente na Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, o cinema de rua reitera a importância da sétima arte como fruição cultural e prática social, e não meramente como consumo. “Ele está alinhado a uma experiência audiovisual expandida e a um senso de coletividade. São espaços que convidam o público a entrar, tomar um café e discutir um filme, no contexto da pré e da pós-exibição”, ressalta. Cecília Ferreira De Nichile, doutoranda em meios e processos audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP) e assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, complementa que o cinema de rua está ligado à ocupação do espaço público, à interação social, ao diálogo e ao debate sobre filmes. “É também uma experiência nostálgica que inclui fazer parte da rua, e por meio da qual é possível imergir e ser abarcado, como num hiato de tempo em que a vida fica em suspenso”, afirma.

 

DIVERSO E ACESSÍVEL
Com 43 anos de existência, CineSesc abriga pluralidade e programação diversa

Inaugurado em setembro de 1979, o CineSesc é um dos cinemas de rua mais tradicionais da cidade de São Paulo, localizado na Rua Augusta, região central. Para além da exibição de filmes a adultos e crianças (no Cineclubinho), a programação reúne mostras, festivais, debates, atividades formativas e cursos sobre a sétima arte. O espaço oferece, ainda, recursos de acessibilidade como tradução em Libras, audiodescrição e legendas open caption.

“Ir ao cinema pode ser uma experiência rica e democrática. E cinemas de rua, como o CineSesc, nos dão essa oportunidade. O trajeto, a imprevisibilidade da vida urbana, o encontro com amigos e desconhecidos, a sala escura com 273 lugares, tudo isso se soma às narrativas audiovisuais que nos tocam. Nestes tempos em que saímos de um isolamento social traumático, espaços de cultura como esse exercem um papel fundamental”, aponta Graziela Marcheti, coordenadora de programação do CineSesc.

Fique por dentro da programação completa do CineSesc. E confira alguns destaques de março e abril:

Mostra Spielberg

Conhecido pela sensibilidade em criar narrativas para o público infantojuvenil, o diretor norte-americano Steven Spielberg passou a intercalar esse tipo de cinematografia com dramas históricos. Um dos protagonistas do movimento Nova Hollywood, Spielberg é celebrado com uma seleção de 11 longas-metragens, como Tubarão (1974), A Cor Púrpura (1985) e A Lista de Schindler (1993). De 2 a 8/3.

Sessão 35mm

The Edukators – Os Educadores

Dir.: Hans Weingartner, Alemanha, 2004, 127 min, ficção, 14 anos

Peter e Jan são educadores e anarquistas que invadem casas de pessoas ricas, nunca para roubar, mas para dar um pré-aviso de que seus dias de luxo estão contados. Dia 14/3 (terça), às 20h30.

OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros

Para destacar a potência poética e política do audiovisual, a mostra apresenta filmes dirigidos por cineastas negras(os). Também haverá exibição na plataforma Sesc Digital.

Consulte a programação completa. De 15 a 22/3.

Mostra de Cinema de Tiradentes SP

Exibição de curtas, médias e longas-metragens brasileiros que foram destaque na programação da Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2023, e que ainda estão inéditos no circuito nacional. De 23 a 29/3

49º Festival Sesc Melhores Filmes

Em abril, o mais antigo festival de cinema de São Paulo, criado em 1974, apresenta, em exibições presenciais e online, as produções mais significativas que passaram pelas telas de São Paulo no ano passado. A votação, aberta ao público, aconteceu no mês de fevereiro.

Conheça a programação. De 5 a 26/4.

 

Fonte: Sesc SP

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