CHEGAMOS AO FUTURO | Quando a história nos devolve o próprio rosto

Às vezes, a vida nos oferece pequenos espelhos inesperados. Não são de vidro, não refletem o corpo, mas devolvem, com uma suavidade quase silenciosa, aquilo que fomos capazes de fazer no tempo. Esta semana, recebi um desses espelhos. Um print da apostila do Anglo, aquele sistema de ensino que atravessa gerações com sua lógica de esquemas, exercícios e apostilas cuidadosamente organizadas. E lá estávamos nós, Os Satyros, estampados como exemplo de “Teatro Digital”, no capítulo “Artes”.

 

Fiquei olhando a imagem como quem observa um fantasma familiar: um retrato de guerra, mas também de invenção. De repente, percebi. Não era uma lembrança. Era história. E estávamos dentro dela.

 

No dia 13 de março de 2020, uma sexta-feira que ainda arde na memória, “Todos os Sonhos do Mundo” estreou não num palco, mas no Instagram. Uma live. Uma gambiarra. Uma urgência. A primeira de tantas. Um corredor do nosso apartamento virou palco e se transferiu para uma tela frágil de vidro. Mas, ainda assim, fomos. Sem garantias, sem roteiro para o futuro, apenas agarrados a uma intuição ancestral: a de que o teatro só morre quando a gente desiste de falar.

 

Mas nós não desistimos.

 

Fizemos peças como quem constrói barcos em tempestades. Reinventamos o encontro como quem reconfigura um afeto. Criamos debates, festivais, ensaios, improvisos. Tudo no fio tênue da internet, que podia cair a qualquer momento, mas que sustentou nossos corpos quando o mundo desabava. Ali, no quadradinho luminoso da tela, sobrevivemos contando histórias. E é tão bonito perceber agora, olhando para aquele print, que não era apenas sobrevivência. Era criação de futuro.

 

Porque quando uma apostila escolar, esse lugar tão sério – tão organizado, tão voltado ao que deve ser aprendido –, decide registrar nossas tentativas, algo se desloca, o íntimo se torna coletivo; o improviso, memória; o ato de resistir, matéria de estudo.

 

E me deu uma alegria imensa. Não por vaidade. O teatro nunca foi um bom caminho para vaidosos. Mas por uma espécie de gratidão profunda. Como se a história tivesse voltado, gentilmente, para dizer: “Eu vi vocês. Eu estava lá.”

 

Estávamos, sim. No olho do furacão, dentro da noite mais longa que já vivemos, inventando uma luz que não vinha de refletor algum, mas da coragem simples de continuar.

 

E agora, ao nos ver numa apostila, penso que talvez seja isso que o teatro faz desde sempre. Ele transforma urgências em legado. O instante em memória. A fragilidade em força. E o medo em gesto.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1972

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