A manhã chega embaciada de cinza. A TV anuncia: madrugada mais fria do ano. Lá fora, a cidade estremece. Cá dentro, algo também se encolhe. O frio não é só temperatura, é convocação de memória, de vínculo, de angústia. A psicanálise nos ensinou que o trauma, às vezes, se anuncia como uma brisa gelada que […]
PSICANÁLISE | A Radiografia Invertida
Na clínica psicanalítica, o espelho não está na parede — está entre as palavras. Não é de vidro, é feito de silêncio, de lapsos, de retornos insistentes. Costumo dizer que eu sou a minha clínica. Parece afirmação solene, quase litúrgica, mas é só um reconhecimento simples. Se colocássemos todos os meus pacientes lado a lado, […]
ESPELHO SOCIAL | Geografia do Reflexo
Na sala de casa há um espelho tão grande que parece ter entrado em cena por engano. Veio do cenário de uma peça dos Satyros. Ficou porque, dizem, espelho de cristal assinado não se dispensa assim. Quem o visita costuma elogiá-lo pelas esquadrias finas ou pela profundidade que empresta à sala. Eu o vejo como […]
OPINIÃO | “Nebulosa de Baco”: o desejo como travessia e o teatro como herança viva
Nebulosa de Baco, novo espetáculo escrito e dirigido por Marcos Damaceno, é um campo de forças impressionante. Um espaço onde desejo, ausência, memória e linguagem friccionam o presente com uma intensidade que emociona e faz pensar. O que se vê no palco, mais do que uma história, é uma espécie de ritual entre gerações. Em cena, […]
UM SONHO | O que resiste, mesmo quando tudo se afoga
Há sonhos que não vêm para ser decifrados — vêm para ser habitados. Como se o inconsciente, esse arquiteto sem licença nem pudor, montasse cidades líquidas onde a lógica se dissolve feito tinta na água. Foi assim, navegando por um país sem nome — talvez asiático, talvez apenas inventado — que reencontrei Bia. E Guadalupe, […]
SONHEI COM A MINHA MÃE | Roteiro Para Abraçar a Ternura ou Eu, Jardineiro de Ausências
A noite decidiu montar um espetáculo na minha cabeça e, como sempre, distribuiu os papéis sem avisar o elenco. Lá estou eu – Ribeirão Claro ao fundo, quimono de Phedra de Córdoba rodopiando, salto de tamanco quase tocando o halo da lua. De tão fiel, o sonho parecia reality show, mas com a cenografia dos […]
QUEM SABE ISSO QUER DIZER AMOR | Isildinha e o Manual da Onipresença — com humor e pipoca
Se houvesse uma escala Richter para medir a capacidade de multiplicar presenças, Isildinha Baptista Nogueira balançaria os sismógrafos já no bom-dia. Descobri isso num sábado glacial, cinco anos atrás, quando um Zoom entediado virou palco de assombro: lá estava ela, transformando a penumbra pandêmica da minha casa em Parelheiros num auditório de ideias em expansão. […]
RITUAL | Labirinto de Reprises
Todas às terças e quintas, às oito em ponto, eu aperto o botão do elevador como quem carimba a passagem para um território sem CEP. No bolso, o mesmo moleskine gasto. Na cabeça, o repetido pacto de silêncio que se assina antes de abrir a alma em consultório. Trinta e tantos anos depois da estreia […]
OPINIÃO | “Veneno”: teatro em carne viva
Há espetáculos que narram. Outros, feito membranas, escutam o ar antes de responder. Veneno pertence a essa segunda estirpe. Na peça da holandesa Lot Vekemans, que Eric Lenate instala no Teatro Estúdio, um homem e uma mulher se reencontram diante de algo mais corrosivo do que a morte: aquilo que ainda respira quando o luto […]
OPINIÃO | “Diga Quem Sou Eu”: o escuro das lembranças negadas
“Diga Quem Sou Eu”, dirigido pelo britânico Ed Perkins, é um dos filme documentos mais devastadores — e necessários — que a Netflix oferece hoje. A narrativa se desdobra em três atos. Tudo começa quando, aos dezoito anos, Alex Lewis sofre um acidente de moto e desperta num mundo sem lembranças — exceto pela sensação […]