Tenho passado a maior parte dos últimos tempos num território limítrofe entre o recolhimento e a escuta. Não há melancolia nem júbilo extremos—apenas essa pausa que se instala quando a voz se cansa de praticar acrobacias e decide se sentar no próprio corpo para descobri-lo. Sempre falei demais. Afinal, meu ofício é traficar palavras, emprestá-las […]
TRAVESSIA | Os que guardam o futuro
De dois em dois meses, como quem renova o fôlego, atravesso o corredor envidraçado da SP Escola de Teatro até a sala onde se reúnem os conselhos da nossa Associação dos Artistas Amigos da Praça. Ali, antes mesmo de se abrirem pastas e planilhas, abre-se um tempo de memória e afeto: vejo o sorriso de […]
CRÔNICA | Lupita e a delicada pedagogia do imprevisto
Confesso: até ontem eu só conhecia o amor canino no tempo em que os cães já vinham prontos, com suas manias adultas meticulosamente estruturadas. Cacilda e Chico chegaram à minha porta assim — maduros, donos de si, quase professores zen do afeto. Doze anos inteiros vivi à sombra benevolente dessa dupla, e tamanha foi a […]
OUTONO | A Doçura que Nenhuma Pressa Alcança
O outono chegou de mansinho, declarando guerra ao verão: se instalou independente das birras do verão que insistia em não ir embora. Mas veio bonito, deixando nas manhãs um frio que arrepiou primeiro a pele, depois as lembranças. É curioso como a queda discreta da temperatura parece baixar também a guarda da alma. De repente, […]
SAUDADE | Nublar o céu para acender por dentro
Acordei com o relógio prometendo pressa: véspera de Dia das Mães, rota relâmpago Congonhas–Curitiba, a mala meio vazia e Guadalupe – nossa mini-golden recém-alfabetizada em travessuras – entregue aos cuidados de Elisa, de última hora. No avião, tentava medir a distância até as lembranças, mas elas decolaram primeiro: atravessaram a janela oval, misturaram-se às nuvens […]
UMA CANÇÃO | Epifania das memórias encobridoras
Em Curitiba, domingo, missa das onze na Igreja de Santa Felicidade. Eu o reconheci pela respiração entrecortada antes mesmo de notar os olhos marejados. Ele vinha de onde a liturgia, em vez de consolo, lhe abrira a represa da infância. “Você se lembra do rosto da nossa mãe quando a gente era criança?”, me perguntou, […]
CRÔNICA | Dialetos do tempo
Nasci numa casa de madeira amarela, janelas azuis — o ponto onde o asfalto desistia e começava o mato. Era o quinto de seis filhos: um pedreiro que lia o mundo com as mãos, uma costureira que conseguiu estudar só até a quarta série. Ali a pobreza não era drama, mas substância: como a gravidade, […]
FESTA | Dia das mães
Quando criança, eu e meus cinco irmãos vivíamos com meus pais numa pequenina casa de madeira amarela, com janelas azuis. Éramos bem pobres e, quando chovia, a casa se enchia de enormes goteiras. Quando surgia um temporal — e, não sei porque, naquele tempo vinham sempre de madrugada —, éramos acordados pela minha mãe que, […]
CRÔNICA | Manual de Sobrevivência para Corpos em Alerta
Quando a tela escurece depois dos créditos de Homem com H, retrato luminoso que Esmir Filho compôs de Ney Matogrosso, algo permanece aceso. É como se o filme deixasse um candelabro aceso dentro da gente, projetando sombras longas de um tempo que já não cabe mais na memória. A luz vacila, mas insiste: lembra a gente de […]
REFLEXÃO | Entre Privilégio e Direito: Cartografia do Acesso
Chamar alguém de privilegiado tornou‑se, nos últimos anos, um atalho retórico que oscila entre denúncia moral e diagnóstico sociológico. Mas, como qualquer atalho, ele oculta a topografia que importa: quem decide o traçado, quem paga o pedágio, quem chega primeiro. Nasci à margem desse mapa. Quinto dos seis filhos de um pedreiro analfabeto e de […]