No contexto da pandemia, desde Março de 2020 até o momento, o diretor Rodolfo García Vázquez e seu grupo Os Satyros experimentaram um caminho que vai da aparente suspensão de possibilidades para a existência do teatro e para o encontro com o público a uma expansão inimaginável. Em A Arte de Encarar o Medo (dramaturgia a quatro mãos, com Ivam Cabral) ele não só enfrentou o isolamento como também foi em busca de formas novas de criação e de compartilhamento do teatro. Nos últimos oito meses aprofundou com o grupo os suportes tecnológicos para uma estética cênica em rede e fez algo ainda não inscrito na cena brasileira: dirigiu simultaneamente três montagens do texto, envolvendo mais de cem artistas de três continentes e 10 países. Os desdobramentos éticos, logísticos e artísticos desta aventura podem ser conferidos nesta generosa entrevista ao CENA ABERTA. Agradecemos ao Rodolfo pelo empenho nas respostas. É um depoimento que nos diz muito sobre o presente, sobre as suas políticas, sobre impasses, e sobre a sobrevivência do teatro nesta hora.
CENA ABERTA – A pandemia provocou fechamento drástico dos espaços tradicionais de criação e de fruição do teatro mundo afora. Por outro lado, paradoxalmente, este fechamento levou Os Satyros a uma abertura de alcance ainda não visto. Em A Arte de Encarar o Medo você dirigiu, além da montagem local, duas outras montagens envolvendo grupos e artistas da Europa, da África e dos Estados Unidos. É algo inédito no teatro brasileiro. Fale um pouco sobre essa experiência, de uma contingência social que por fim revelou a oportunidade de uma aventura criativa sem precedentes.
Rodolfo García Vázquez – Em chinês, a palavra crise é a junção de dois caracteres, perigo (ou precariedade) e ponto de mudança. Acho que é uma metáfora excelente para o processo que vivemos. Foi assustador, em um primeiro momento, entrar em isolamento devido à pandemia . Entre o catastrofismo de alguns e os devaneios negacionistas de outros, decidimos que não podíamos nos deixar abater. Foi assim que imediatamente após a determinação da quarentena e do consequente fechamento de todos os teatros, Ivam (Cabral) resolveu manter vivo o monólogo Todos os sonhos do mundo, através de seu instagram. A quarentena começou no dia 15 de março e no dia 20 subsequente já estávamos em temporada digital. Ele fazia no corredor do apartamento, com uma transmissão instável e de forma quase improvisada. Mas nós sabíamos: era um ato de resistência necessário.
Em seguida, a plataforma Sympla nos ofereceu uma sala de zoom para pesquisar possibilidades teatrais. Era um convite sem compromisso. Decidimos convidar o núcleo de atores mais antigos dos Satyros para experimentar juntes. São artistas que trabalham no coletivo há mais de uma década. E no começo de Abril iniciamos os ensaios. O primeiro encontro foi regado a lágrimas, saudades e medos. O que seria de nós? O que significava exatamente a pandemia? Como fazer teatro em tempos de isolamento?
Logo no início dos ensaios, uma amiga sueca nossa, Ulrika Malmgren, leu sobre o projeto nas redes sociais e se interessou em participar. Se estávamos usando um espaço digital, era indiferente o fato de ela estar em Estocolmo e nós, no Brasil. Ela participou de todos os ensaios e estreou a montagem brasileira conosco, no começo de junho de 2020.
Desde o início da temporada fomos convidando artistas e produtoras internacionais para assistir ao trabalho. Muitas dessas pessoas ficaram apaixonadas pelo projeto e foram chamando outros artistas. Foi uma bola de neve, que nos envolveu de forma absolutamente inesperada e veloz, gerando as montagens afro-europeia e norte-americana, que estrearam menos de três meses após a estreia brasileira.
O ápice dessa aventura digital foi no dia 26 de Setembro, quando apresentamos uma maratona com as três montagens, envolvendo mais de 100 artistas em 10 países diferentes. Um sonho tecnológico que nos mostrou o potencial do teatro digital. Essa maratona vai se repetir agora no início de dezembro, na ocasião da Satyrianas on-line.
CA – Vocês apresentam a dramaturgia destas montagens em termos de “roteiro”. Podemos então intuir que as encenações não são totalmente fechadas e têm variações? O que você destacaria como singular, que diferencia cada montagem, ainda que haja um eixo dramatúrgico comum?
RGV – Eu e Ivam pensamos num roteiro base. A sinopse do projeto era: imagine que em 5.555 dias o mundo ainda não tenha conseguido superar definitivamente a pandemia da Covid 19, como estaremos vivendo? Muitas pessoas terão morrido, sobreviventes estarão vivendo isoladamente em suas casas e somente a internet poderá tornar o convívio social possível. Foi a partir disso que o coletivo brasileiro criou dispositivos, improvisos e imagens, que foram sendo estruturados em sintonia com o roteiro, ajustando falas e sequenciando as cenas. Um work in progress intenso e bastante criativo até a formatação final do roteiro brasileiro.
Quando iniciamos o projeto afro-europeu, nos defrontamos com realidades culturais completamente diferentes da nossa. Eram artistas de 9 países (África do Sul, Alemanha, Brasil, Cabo Verde, Inglaterra, Nigéria, Senegal, Suécia, Zimbabwe) e em cada país o impacto da pandemia era sentido de forma distinta. As diferenças culturais eram gigantescas também. Vale destacar que na montagem afro-europeia são falados mais de qunze idiomas diferentes. Apesar de haver um eixo geral em inglês, os idiomas maternos são valorizados na montagem, algo que é uma questão fundamental no debate cultural africano contemporâneo.
Não faria nenhum sentido nós, Satyros, como decolonialistas que somos, pensarmos a montagem com um olhar unicamente brasileiro. Apesar do pouco tempo de que dispúnhamos, passamos a investigar possibilidades de criação em devising, valorizando as identidades culturais dos artistas. Para mim, especialmente, foi emocionante ver em cena elementos da religiosidade iorubá de artistas nigerianos como M´Bola ou Segun que se relacionavam profundamente com a tradição afro-brasileira. Ou assistir aos sul-africanos trazendo canções lendárias do movimento do apartheid para o espetáculo.
Quanto à montagem americana, o elenco em sua maioria não se conhecia. No entanto, a grave situação social e política americana aproximou os artistas de forma bastante intensa desde o primeiro ensaio. No meio do processo, houve uma explosão emocional dos artistas afro-americanos que sentiam a urgência da discussão do Black Lives Matter no espetáculo. E foi aberto espaço para a criação de uma cena abordando especificamente a questão racial norte-americana. A cena surgiu das angústias colocadas pelo elenco não-branco da montagem e trazia questões muito fortes sobre a guerra cultural que está dividindo o país.
CA – O espetáculo é, pode-se dizer, uma ficção distópico-futurista por meio da qual são desenhadas possíveis variações afetivas e políticas do presente, em um porvir nada alentador. Mas, em outro paradoxo muito produtivo, para contar essa história com os meios disponíveis, foi necessário mais que a projeção de sentimentos sobre o futuro. Foi preciso inventar repertórios, soluções técnicas e poéticas que vão do domínio dos novos meios – as plataformas de transmissão – até as maneiras de recolocar em cena as tarefas mais elementares da criação teatral, como aquelas relacionadas ao trabalho do ator. Fale sobre como foi orquestrar em um mesmo movimento essas demandas antigas e novas da arte do teatro.
RGV – Os Satyros vêm pesquisando teatro ciborgue há mais de uma década. Essa pesquisa surgiu em montagens como Hipóteses para o Amor e a Verdade (2010), Cabaret Stravaganza (2011) e o projeto de sete espetáculos E se fez a humanidade ciborgue em sete dias (2014). A investigação surgiu do entendimento que temos de que o teatro, ao ser uma forma artística que só pode se efetivar em uma determinada realidade social, deve responder às questões de seu tempo. E a revolução tecnológica que marca o século XXI, do fenômeno do capitalismo Informacional às implicações éticas da engenharia genética, pode e deve estar presente na cena teatral a fim de que esta possa se manter relevante no debate cultural.
Desde o início da pesquisa ciborgue, iniciada em 2009, Os Satyros vêm utilizando celulares, sites de internet, redes sociais, robôs, aplicativos, dispositivos tecnológicos e programas de computador. Essa investigação não implicava em custos altos. Trabalhamos basicamente a partir dos avanços tecnológicos que eram de acesso fácil e amplo. Foi a partir desse universo que surgiu o meu mestrado sobre teatro expandido, onde exploro especialmente as formas de telepresença e as possibilidades da dramaturgia expandida. Aliás, é interessante notar o crescimento do interesse por temas ligados a teatro e tecnologia desde o início da pandemia. Quando fiz a pesquisa do meu mestrado entre 2014 e 2016, havia raríssimas referências acadêmicas sobre teatro ciborgue. Desde que estreamos A arte de Encarar o Medo, no entanto, muitos pesquisadores brasileiros e estrangeiros têm nos procurado para falar do assunto.
De qualquer forma, as pesquisas dos Satyros sobre formas de telepresença foram fundamentais para embasar e conceituar o espetáculo como teatro digital. Assim, quando recebemos o convite da Sympla em Abril passado, apesar de não sabermos nem mesmo como entrar em uma sala de zoom, não tivemos nenhum receio ou preconceito contra a teatralidade digital. Nós nos jogamos de cabeça no processo e pudemos aprofundar as pesquisas sobre teatro ciborgue. E cada descoberta feita no zoom gerava um aprendizado técnico e e estético que era incorporado pela direção de arte e pela dramaturgia simultaneamente, inserida em um panorama mais amplo que se dava na continuidade da nossa investigação.
No início dos ensaios, o elenco se encontrava isolado em suas respectivas casas e gravava improvisos individuais no celular. As gravações eram apresentadas na sala zoom para o restante do elenco no dia seguinte. Eram ensaios em tecnovívio. Discutíamos as propostas apresentadas e desenvolvíamos novas provocações, sempre gravadas. Depois passamos a fazer improvisos ao vivo. Talvez essa tenha sido a decisão mais importante de todo o processo. Resolvemos que não faríamos nenhuma cena pré-gravada. O espetáculo seria integralmente realizado ao vivo pelo elenco. E, caso usássemos efeitos, eles estariam embasados em uma telepresença no aqui/agora digital de algum atuante. O processo foi tão surpreendente que até duas semanas antes dos primeiros ensaios abertos não sabíamos como sonorizar as cenas nem como usar os recursos de plano de fundo. Essas descobertas foram rapidamente incorporadas ao trabalho até o dia da estreia. Cada dia havia uma surpresa técnica a explorar.
A direção de arte também foi agente provocador no processo criativo e trazia elementos imagéticos que o elenco retrabalhava em suas próprias casas.
Fomos aprendendo a lidar com a materialidade da cena, como definir os espaços, os ângulos de câmera, a iluminação, a cenografia e os figurinos. O estilo de atuação foi sendo descoberto à medida que ensaiávamos, entendemos como a atuação não estava condicionada pelos padrões do teatro tradicional, mas também não tinha relação alguma com a atuação dos meios audiovisuais tradicionais, como cinema e Tv.
Outro aspecto muito interessante foi entender como funcionariam os elementos mais tradicionais do teatro no meio digital, tais como coxia, entrada e saída de cena, deixas, improviso em cena, relação com plateia. Tudo isso foi sendo descoberto antes e durante a temporada, no processo de tentativa e erro. Por exemplo, criamos a nossa coxia em um grupo de whatsapp, onde trocamos mensagens sobre o andamento das cenas e as soluções de problemas que surgem durante o espetáculo. Eram desafios diários que fomos superando pouco a pouco, como por exemplo, o que é visível para o público digital em laptops ou celulares e como orquestrar todos os elementos para uma melhor recepção do trabalho em cada suporte. E como no teatro tradicional, toda a operação de entrada e saída de cena é controlada pelo elenco. Não existe um editor ou algo do gênero. Eles recebem suas deixas e entram em cena (abrem suas câmeras e microfones) ou saem de cena de acordo com as marcações que estabelecemos.
CA – Como você avalia esta experiência na perspectiva de trabalho d’Os Satyros? Como pensa que ela será assimilada e o que ela acrescenta aos projetos futuros?
RGV- Aquilo que no início de nossas pesquisas era apenas uma intuição, a quebra do paradigma espacial, nos levou a uma constatação radical: a tecnologia nos redimensionou no espaço. A pandemia radicalizou essa percepção. E o teatro pode ser realizado nessa nova dimensão do tecnovívio. Qualquer artista pode trabalhar em telepresença com centenas de artistas espalhados pelo Brasil e por mais de dez países, como aconteceu conosco. Da nossa aldeia, trabalhamos com o mundo.
A quebra dos padrões espaciais gerou a democratização do acesso digital ao teatro pelo público. Espectador_s de praticamente todos os estados do Brasil estão vindo nos assistir. É como se a Praça Roosevelt pudesse se locomover por todo o país. Público que talvez nunca tivesse a oportunidade de assistir ao nosso trabalho de teatro em sala tradicional. O teatro deixou de ser um fenômeno de acesso restrito a grandes centros urbanos ou festivais pontuais em cidades menores e passou a ser acessível a qualquer pessoa. Os jovens que fazem teatro em pequenas cidades pelo interior do país podem ter contato com o trabalho realizado em outras partes do país. E, por outro lado, eles também podem apresentar seu trabalho para plateias geograficamente distantes. O teatro pode multiplicar-se neste ambiente, tanto para artistas quanto para plateias.
CA- Olhando para este trabalho, o que lhe ocorre sobre o futuro próximo do país, Rodolfo? O que lhe ocorre dizer sobre o Brasil dos próximos anos?
RGV- É muito preocupante ver a que ponto o Brasil chegou nos últimos tempos. Há uma fratura insuperável a dividir o país, transformando-nos em inimigos potenciais uns dos outros. É assustador constatar que o tema básico de redes sociais seja o ódio e a intolerância. A ideia de Brasil já não se sustenta mais, e um grupo específico tenta sequestrar a identidade nacional, isolando e tentando destruir grupos sociais divergentes. A falta de diálogo e respeito dominam o espaço público.
E pela experiência das três montagens com artistas de tantos países, pude perceber que esse fenômeno não é exclusividade nossa. O mundo está vivendo tensões demográficas e sociais graves, assistindo a lutas identitárias em uma guerra cultural sem fim. Nada indica uma resolução desses conflitos a curto prazo. As redes sociais são parte desse processo de radicalização, potencializando as diferenças e os conflitos através de algoritmos. Estas tensões podem eventualmente terminar em guerras civis mundo afora. A crise global da humanidade está nascendo justamente no auge de seu avanço tecnológico.
Ao teatro cabe a tarefa gigantesca de tentar expressar nossas angústias e temores, trazendo-os à cena para podermos melhor lidar com eles. Ao lançar luzes sobre opressões e dar voz aos grupos silenciados, podemos estabelecer pontes de diálogo e esperança de uma vida melhor para todes. Em suma, buscar o reencontro com nossa humanidade perdida. Não sou catastrofista, acredito que encontraremos saídas. Mas elas só poderão ser encontradas através de uma humanização dos nossos olhares sobre o mundo. Desalienar o outro e refazê-lo humano tão sujeito da história quanto eu mesmo. Acredito que a resposta esteja naquilo que Nelson Mandela professava, um dizer sábio da filosofia Ubuntu: eu sou porque nós somos. E por ser quem somos, eu posso ser quem sou.
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Quem faz “A Arte de encarar o medo” (montagem brasileira):
Roteiro: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Elenco: Ivam Cabral, Eduardo Chagas, Nicole Puzzi, Ulrika Malmgren, Diego Ribeiro, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Marcelo Thomaz, Marcia Dailyn, Mariana França, Dominique Brand, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo. Ator convidado: César Siqueira. Atores mirins convidados: Nina Denobile Rodrigues e Pedro Lucas Alonso
Orientação visual: Adriana Vaz e Rogério Romualdo
Fotos: Andre Stefano
Produção: Os Satyros
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Em cartaz até 20 de Dezembro. Sexta e Sábado às 21h, domingo às 16h/Ingressos:R$20,00/R$10,00 (Gratuitos para quem não puder pagar devido a dificuldades com a pandemia). Em: www.sympla.com.br
Fonte: Cena Aberta
Eis aí a pura e profunda realidade sociológica e filosófica:
A “Copa das Copas®” do PT® em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis! A Copa das Copas®, do PT© e de lula©.
Nada se fez em 13 anos para esse mal brasileiro horroroso. Apenas propagandas e propagandas e publicidade. Frasinhas.
Qual o poder constante da propaganda ininterrupta do PT®?
Apenas um frio slogan, o LUGAR DE FALA do Petismo® (tal qual “Danoninho© Vale por Um Bifinho”/Ou: “Skol®: a Cerveja que desce Redondo”/Ainda: “Fiat® Touro: Brutalmente Lindo”). Apenas signos dessubstancializados. Sem corporeidade.
Aqui a superficialidade do PETISMO®:
Signos descorporificados. Sem substância. Não tem nada a ver com um projeto de Nação. Propaganda:
Nem tudo que é legal é honesto. O PT® nos induz ao engodo com facilidade.