Nasci numa casa de madeira amarela, janelas azuis — o ponto onde o asfalto desistia e começava o mato. Era o quinto de seis filhos: um pedreiro que lia o mundo com as mãos, uma costureira que conseguiu estudar só até a quarta série. Ali a pobreza não era drama, mas substância: como a gravidade, […]
FESTA | Dia das mães
Quando criança, eu e meus cinco irmãos vivíamos com meus pais numa pequenina casa de madeira amarela, com janelas azuis. Éramos bem pobres e, quando chovia, a casa se enchia de enormes goteiras. Quando surgia um temporal — e, não sei porque, naquele tempo vinham sempre de madrugada —, éramos acordados pela minha mãe que, […]
CRÔNICA | Manual de Sobrevivência para Corpos em Alerta
Quando a tela escurece depois dos créditos de Homem com H, retrato luminoso que Esmir Filho compôs de Ney Matogrosso, algo permanece aceso. É como se o filme deixasse um candelabro aceso dentro da gente, projetando sombras longas de um tempo que já não cabe mais na memória. A luz vacila, mas insiste: lembra a gente de […]
REFLEXÃO | Entre Privilégio e Direito: Cartografia do Acesso
Chamar alguém de privilegiado tornou‑se, nos últimos anos, um atalho retórico que oscila entre denúncia moral e diagnóstico sociológico. Mas, como qualquer atalho, ele oculta a topografia que importa: quem decide o traçado, quem paga o pedágio, quem chega primeiro. Nasci à margem desse mapa. Quinto dos seis filhos de um pedreiro analfabeto e de […]
REFLEXÃO | “Homem com H”: arqueologia de um canto que atravessa corpos e décadas
Ontem fui ao cinema assistir Homem com H. Me sentei na sala escura como quem deposita o ouvido num velho vinil, à espera do primeiro estalo da agulha. Mal as luzes se apagaram, o filme de Esmir Filho abriu sobre a tela uma dobra do tempo: minha infância latejava ali, naquele menino que, aos dez anos, […]
CELEBRAÇÃO | Milton Santos: quando a periferia é origem
Se ainda estivesse entre nós, o geógrafo baiano Milton Santos faria aniversário hoje. Duvido, porém, que soprasse velinhas; antes, escancararia janelas, convidando o mundo a atravessar o mapa que nos ensinou a redesenhar — aquele em que bordas são elásticos e o centro, sempre, ponto de fuga para outro centro. Foi ele quem me convenceu de […]
TRIBUTO | Walcyr Carrasco, ou o homem que comprimiu o tempo
Meu amigo Contardo Calligaris gostava de dizer que felicidade não existe; o que existe são vidas interessantes. Se a tese procede, Walcyr Carrasco está salvo — e com capítulos de sobra. Autor de alguns dos maiores sucessos da televisão brasileira, administra um fuso horário particular, onde manhã, tarde e noite correm em modo maratona. Basta […]
OPINIÃO | “O Papel de Parede Amarelo e Eu”: Quem continua trancando quem?
Sabe aquele clássico que você jura que leu no colégio, mas na verdade só folheou o resumo? Pois bem, The Yellow Wallpaper, de Charlotte Perkins Gilman, é desses. Publicado em 1892, virou bandeira do feminismo ao expor uma jovem trancafiada pelo marido num quarto “para repousar os nervos” — prática médica tão absurda quanto servir água […]
CRÍTICA | A insurgência poética d’Os Satyros – um rito cibernético, por Bob Sousa
O espetáculo Peça para Salvar o Mundo, da companhia Os Satyros, propõe uma radical reconfiguração da visualidade e da presença cênica no teatro contemporâneo. Dirigida por Rodolfo García Vázquez, com assistência de Fabrício Rodrigues e Renatto Moraes, e idealizada em parceria com Ivam Cabral, a obra é mais que um experimento artístico: é um manifesto […]
ADEUS | O Dia em que Nana Caymmi brigou comigo ou Nana de timbre entre bruma e mar
Para mim, Nana Caymmi sempre manteve lugar cativo entre as cinco vozes fundamentais da música brasileira. As outras, que eu não saberia ranquear, são Maysa, Gal Costa, Maria Bethânia e Ângela Maria. Há algo em seu timbre — entre bruma e mar — que se impõe sem alarde, como quem sabe que não precisa erguer […]