CRÔNICA | Ausência como medida de tempo

Ando chorando demais nos últimos tempos.

Não é aquela lágrima contida, discreta, que a gente disfarça com o canto da boca. É choro inteiro, copioso, sem pudor. Hoje mesmo, quando a motorista do Uber me deixou em Congonhas, mal consegui desejar um “obrigado, bom dia”. A voz saiu embargada, como se carregasse nas cordas vocais o peso de uma vida inteira.

Na corrida rá[pida, a Josefa, motorista, compartilhou comigo a dor recente de sua família. Contou sobre a irmã, morta aos 34 anos, engolida pelo câncer de mama que, quando descoberto, já era metástase. Três filhos ficaram órfãos. E mais: um homem miserável, que se dizia companheiro, bem na reta final, tratou de tirar dela o convênio médico e, depois da morte, não permitiu que as crianças tivessem contato com a avó, com os tios, com a família que poderia lhes oferecer algum colo. É daquelas histórias que revolvem o estômago e fazem a gente estremecer de indignação.

Assim que fechei a porta do carro, não aguentei. Sentei num banco do aeroporto e chorei. Cara entre as mãos, olhos fechados, sem me importar com quem passava. Havia um mundo inteiro ruindo dentro de mim, mas também havia um espaço de humanidade que se abria no meio da pressa dos embarques.

Tenho pensado muito nesse planeta saturado de machos cruéis e preconceituosos. Mas não só deles. Mulheres também, tantas vezes, se juntam ao coro da violência simbólica. Recentemente, precisei romper com uma delas. Alardeava bandeiras feministas, mas era de uma toxidade assustadora – incapaz de conviver com quem pensasse diferente. Um feminismo de trincheira estreita, que, em vez de libertar, aprisionava.

Mas volto à Josefa e à lembrança que sua história me despertou. Quando ela falou da irmã que se foi cedo demais, inevitável não pensar no meu irmão Dimi. Quatro anos mais velho que eu, partiu antes dos sessenta. Agora, passados oito anos, sou mais velho do que ele jamais foi. Essa constatação me atravessa. Viver mais do que quem nos precedeu é carregar também a ausência como medida de tempo.

Entre lágrimas, levantei. Lavei o rosto no banheiro do aeroporto e fui até a minha poltrona 3A, no voo da Latam que partiu pontualmente ao meio-dia. E percebi. Apesar de tudo, a vida continua. Continua linda, mesmo atravessada por tantas cicatrizes. Talvez seja justamente isso. A beleza de seguir, mesmo com o coração marcado de dor.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1928

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