CRÍTICA | “As Bruxas de Salém”, por Marcio Tito

Confirmando antigos talentos e apresentando novos nomes, a peça é atitude de amor e luta. Declara um Brasil adoecido mas iluminado por um grupo atento aos sinais – As Bruxas de Salém.
Por Marcio Tito
@marciotitop

Tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação do fogo – Gustavo Mahler,

Gosto muito de uma definição que apresenta “clássico” com sendo um ‘sistema discursivo que, em todos os tempos e diante de todos os povos, sem alterar a sua estrutura fundamental, sempre dirá aquilo que diz”. A história do anti-herói John Proctor, e consequentemente o drama que se ocupa das contradições político-religiosas da cidade de Salém entre 1692 e 1693, de certo, e por variadas vias, sempre dirá o que diz e, de modo reiterado, não deixará de apresentar sólidas camadas ao tempo presente. Na extraordinário montagem dos Satyros, cuja manutenção dos pilares originais é ponto positivo, o que está posto é um grupo de pesquisa frontalmente disposto perante uma obra que, pela ordem do dia, opta por duas instâncias – Visitar e combater as trevas de um país que tem insistido em caçar as mais variadas bruxas gays, comunistas ou vacinadas e, unificando as pautas, revisar e revelar o que é que de fato habita e anima o lema – Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Deste ponto, na lida com um material capaz de carregar consigo um fator humano e social tão indiscutível quanto nítido, Rodolfo García Vázquez, realizando a trajetória de valores da Cia Os Satyros, apresenta uma das mais seguras e marcantes leituras, escolhas de repertório e encenações dos últimos tempos. Sociologicamente atento às disputas implícitas ao original, e recorrentemente capaz de atravessar com elegantes doses de contemporaneidade o texto de Arthur Miller, Vázquez não se esforça em assinar ou grifar sua marca de artista visual – e é neste ponto que a montagem se ergue e acessa os seus melhores expedientes: uma encenação criativa e ainda assim segura daquilo que de fato a sinopse propõe, um elenco seguro do encontro com um clássico, e a estrutura dramática “pra fora e acima” dos procedimentos épicos; até que tudo isso transporte Salém para o Brasil – e o Brasil para Salém.

Vázquez, sujeito de sólida formação sociológica, mais uma vez, aplica junto ao seu arguto senso visual e estético o que há de mais profundo na Cia Os Satyros – a impressão de que sociologia e as artes cênicas podem e devem caber nos mesmos espaços. Logo de saída, exibindo as disputas mais urgentes ao processo de adaptação, Rodolfo e Flávio Duarte iluminam com precisão e técnica o núcleo de atores e atrizes pretas Revela-se um cuidado com a incidência das cores contra as peles. E este singelo exercício de respeito aos corpos e às diferenças, com notável delicada, já formula uma bem-vinda e super-consciente argumentação estética. Já nas primeiras cenas, sem capitular e comunicando frontalmente – Os Satyros encontram Arthur Miller durante uma Tempestade Perfeita.

As primeiras transições da montagem nos asseguram que o projeto acessará algum lugar bastante especial e pessoal em seus fazedores e fazedoras. E as possíveis ressalvas ao elenco que escapa ao núcleo duro, no contexto de realidade e relevância da montagem, ganham as cores de uma juventude aguerrida e disciplinada, e cada uma dessas pulsões, pela pungência das coisas que diz, talvez nos faça que mesmo o elenco mais preparado do mundo, caso não monte As Bruxas de Salém em 2023, possivelmente terá deixado escapar a chance de realizar um teatro irmanado às exigências do mundo real. Apresentar temas com pouca ou nenhuma atenção ao tempo presente ofende Dionísio, tal qual “ofendemos a Deus quando perdemos as nossas vidas por orgulho ou vaidade”.

Contudo, sabendo lidar com as forças da balança, a direção encontra não somente um grande acerto ao magnetizar o volumoso, mas também a ventura de um justiçamento bastante oportuno – Henrique Mello, Diego Ribeiro, Elisa Barbosa, Julia Bobrow, Gustavo Ferreira, Eduardo Chagas, Mariana França e Ana Paula Kuller, quando tão bem emoldurados pelas constantes encenações, encontram espaço para entregas artesanais e solidamente destacadas do todo, embora o texto original, por sua longa duração e macro estrutura, muitas vezes construa somente figuras capazes de cumprir funções, e não solidamente interessadas na expressão de contradições.

Proctor, o sujeito imoral, que defende a própria honra, mas o faz somente quando precisa lidar com as consequências ou com a revolta da parte “lesada”, é uma personagem complexa, sobretudo porque seu Intérprete se vê obrigado a sustentar um caráter claramente egocêntrico e vaidoso, e ainda assim ascender ao ponto de uma curva heróica. Ao percebermos “um fragmento de bondade em John Proctor”, já nos estertores finais, surgirá tudo o que torna Proctor uma das mais especiais personagens da dramaturgia universal – algo além do arrependimento e acima da vaidade – uma espirtual e densa misericórdia sobre si e sobre o mundo ao redor – como fosse a conquista de uma percepção acerca da histeria coletiva e de todo o pavor que assola a qualidade humana de tempos em tempos.

Henrique Mello, em seu mais decisivo papel, entrega qualquer coisa além do extraordinário e confirma-se como um dos principais artistas de sua geração. Instaura, com econômicos recursos, não somente a virtualidade de uma personagem cuja curva dramática se mostra nebulosa, mas também a impressão de um gestual governado por uma profunda necessidade de crença e rebeldia. O sujeito que afronta um período, e o faz sem qualquer garantia de sucesso, o sujeito que não reencontrará a própria paz, com muita técnica e algum nível de depoimento pessoal por parte do ator – uma vez que seus olhos brilham com muita profundidade, em tintas fortes, está otimamente realizado pela organicidade presente nas maiores e menores decisões de Henrique. Existe um corpo que resiste ao texto, uma dura permanência e um sobressalto que antevê o chicote, a tortura e a forca. É um trabalho de rara elegância, mas também serve como denúncia aos grupos cujos elencos não entrontram estrada para uma pesquisa continuada. Os acertos do elenco com maiores falas, para além dos sólidos intérpretes que são, inscreve-se muito na amplitude que a diversidade de personagens já realizadas empresta às figuras – neste caso, mais uma vez, Henrique nos entrega uma personagem brilhantemente destacada de todas as suas personagens anteriores.

Caetano Veloso, no mais recente Roda Viva da TV Cultura, quando perguntado se hoje “enxerga-se como um homem de esquerda”, chega a dizer que sente-se sempre “mais à esquerda de si mesmo”.
Gustavo Ferreira, Julia Bobrow, Mariana França e Eduardo Chagas, formulando um quarteto que compõem talvez a totalidade das montagens do grupo nos últimos dez anos, me trouxe esta mesma impressão. Sempre com um nível qualitativo elevado, entregando de fato uma sequência de trabalhos bem elaborados, na presente montagem, parecem não somente realizar o bom e muitas vezes ótimo teatro que realizam, mas há um certo sabor de regresso ao tempo da pesquisa, estão sempre mais ao tempo da arte de si mesmos. Júlia pesquisa como pesquisou em Roberto Zucco, Gustavo como pesquisou em Hipóteses, Eduardo Chagas e Mariana França como imprimiam tipos na Trilogia Libertina. Parecem, os quatro, sempre mais inclinados às expedições interiores, e é bastante emocionante perceber os seus pequenos pontos de apoio, reformulação e resgate. São artistas que nos entregam parte de si e do tempo.

As Bruxas de Salém marca um retorno às dramaturgias mais generosas com atores com formação mais tradicional, e torna-se impossível não aplaudir com a mesma intensidade com que já aplaudimos Divinas Palavras, Liz, Roberto Zucco, Hipóteses Para o Amor e a Verdade, 120 Dias de Sodoma, Justine e A Filosofia na Alcova.

Mais recentes no grupo, porém acrescendo muito ao contexto, Elisa Barbosa, Diego Riberio e Ana Paula Kuller. Elisa, com o mais precioso gestual da peça, cria uma parábola de beleza e dor. A sorte de uma mulher resiliente e digna apresenta um ponto especial do trabalho. Outra atriz, com outras decisões, poderia reduzir-se ao posto de “mulher perdida” num mundo mais forte que ela, mas Elisa, pelo exponencial de uma delicada percepção, atravessa a montagem e define uma densa ferida capaz de realizar um ponto entre Proctor, a cidade insandesida e uma mulher capaz de perceber as contradições presentes nos dois pólos.

Diego Ribeiro, agraciado com o papel mais interessante da peça, faz o que devia ser feito – desenha uma perfeita trajetória de personagem, simboliza o bom senso da plateia diante daqueles extremistas e da vaidade de Proctor, e brilha numa personagem que não lhe pedia corpo, mas sim uma delicada e preciosa viagem vocal entre imagens e argumentos.

Já Anna Paula Kuller, defendendo a personagem feminina mais complexa da montagem, com idas e vindas, tomadas de consciência de auto-salvação, chega com tudo e parece abrir a porta para a sua definitiva entrada no grupo. Seu repertório vocal é amplo e significativo. Sua figura, embora expresse uma quase-criança precisando lidar com uma loucura coletiva, não se torna genérica e passa a tecer uma tensão que alimenta o espírito da montagem por mais de uma vez.

Num resumo de tudo o que foi dito – o núcleo duro afirma ao público a razão de uma teatro de pesquisa continuada e torna presente a assinatura Satyros Clássicos, enquanto a nova geração de atores e atrizes renova o fôlego e participa da motagem com poética e técnica presenticação do que há de mais notável na Escola Satyros de interpretação – nunca genérica e sempre detalhada. Contudo, como destaque absoluto da montagem, está a força o Coletivo e a forma como cada ponto subjetivo trouxe sempre mais contradição ao texto de Arthur Miller.

Um espetáculo prenhe de olhares futuros, e que de fato conceberá uma plateia capaz de dar-se aos seus contraditos mais urgentes. Uma cena decidida por encarar de frente os restos de um Brasil em agonia. Das mais especiais montagens da temporada, das mais bem arquitetadas e urgentes montagens do nosso teatro recente. Rodolfo García Vázquez completamente interessado no tema e ganhando a estatura do autor escolhido. As Bruxas de Salém confirma a grandeza do grupo por mais dez ou vinte anos. É uma das mais expressivas declarações de amor ao Brasil e ao teatro.

FICHA TÉCNICA

Idealização: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Texto: Arthur Miller

Direção: Rodolfo García Vázquez

Elenco: Alana Carrer, Alessandra Nassi, Alex de Felix, Aline Barbosa, André Lu, Anna Paula Kuller, Bruno de Paula, Cristian Silva, Daj, Diego Ribeiro, Diogo Silva, Eduardo Chagas, Elisa Barboza, Felipe Estevão, Georgia Briano, Guilherme Andrade, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Heyde Sayama, Ícaro Gimenes, Jéssica de Aquino, Julia Bobrow, Karina Bastos, Laura Molinari, Luís Holiver, Marcia Dailyn, Mariana Costa, Mariana França, Pri Maggrih, Sabrina Denobile, Suzana Horácio e Vitor Lins
Assistência de Direção: Guilherme Andrade

Tradução: Rodolfo García Vázquez

Dramaturgismo: Luís Holiver e Sabrina Denobile

Figurino: Elisa Barboza e Marcia Dailyn

Cenário: Thiago Capella

Iluminação: Flávio Duarte

Sonoplastia: Coletiva

Preparação Vocal: André Lu

Operação de Luz: Flávio Duarte

Operação de Som: Gabriel Mello

Produção: Diego Ribeiro, Elisa Barboza, Gabriel Mello e Maiara Cicutt

Realização: Os Satyros

 

Fonte: Deus Ateu

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