Em Busca de uma Pedagogia para a Emancipação
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho:
os homens se libertam em comunhão.
Paulo Freire
A SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco é uma instituição cujo projeto educacional e artístico tem seus fundamentos vinculados à concepção de Escola Livre. Essa concepção nos permite aproximar o ideário de liberdade, presente no campo das artes, à profissionalização do artista. Por outro lado, a mesma concepção, muitas vezes, instaura nas instituições escolares a falsa visão de liberdade, na qual acredita-se que todo indivíduo é livre para fazer o que lhe der vontade, mesmo que isso signifique sobrepor a ideia de coletividade ou a condição de ser social.
Na SP Escola de Teatro, o termo Escola Livre traz uma série de implicações. A primeira delas está relacionada às regulamentações do sistema educacional brasileiro. Em geral, a organização do sistema educacional em nosso País está a cargo de órgãos governamentais, ligados à Educação. Esses órgãos não só regulamentam todo processo de ensino do Brasil, como também definem o perfil dos profissionais da educação. No caso da nossa Escola, esse modelo inviabilizaria uma série de ações artísticas e pedagógicas que compõem o processo de formação dos aprendizes. Por exemplo, seria quase impossível a presença de artistas na Escola como formadores, sem que esses não tivessem cursado uma licenciatura na área teatral, mesmo diante de trajetórias profissionais reconhecidas e relevantes para o teatro. Outra implicação seria o engessamento da matriz curricular da Escola. Ou seja, diante das determinações dos órgãos governamentais ligados à Educação, não seria possível compor e reconstruir a matriz curricular da Escola, a cada Módulo de ensino, com base na realidade do trabalho desenvolvido na sala de aula e nas necessidades dos cursos como já tem ocorrido. Tudo deveria passar primeiro pela égide da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.
Assim sendo, sob a denominação de Escola Livre, passamos a assumir integralmente as responsabilidades pelas nossas escolhas e pela organização curricular. A Escola e os envolvidos nas propostas pedagógicas tornam-se livres para reconduzir o trabalho pedagógico de acordo com as necessidades da Instituição e, por conseguinte, do coletivo. Isso nos oportuniza a elaboração de um sistema vivo, dinâmico e mais próximo dos envolvidos no processo de aprendizagem. Porém, outros desafios surgem. Esses desafios estão voltados ao desenvolvimento das responsabilidades e do profundo senso de comprometimento que o aprendiz deverá ter frente ao conhecimento e às proposições da Escola.
O aprendiz precisará estar atento aos espaços de trocas e de diálogos oferecidos pela Escola. A presença do aprendiz, bem como o seu processo de formação, não está resumida e nem tampouco garantida pela assinatura nas listas de presença da Escola. É necessário que o aprendiz se desloque, constantemente, do seu estado de direito individual e assuma o papel de propositor, levando-se sempre em consideração o coletivo.
Nesse sentido, a Escola enfatiza processos dialógicos, em que os aprendizes aprendem e se desenvolvem na diferença, no respeito e na relação com o grupo com qual estão comprometidos. Isso significa que é na comunhão com o outro, na hibridez entre teoria e prática, nas possibilidades de porosidade entre as artes e as tecnologias que o aprendiz encontrará o campo propício à formação artística e profissional.
A origem da Escola está fundada na ação conjunta de diversos profissionais das artes cênicas. Durante o período em que pensávamos no modelo pedagógico que adotaríamos, visitamos escolas de teatro Brasil afora, além de uma na Bolívia e algumas na Alemanha. Criamos, então, um projeto híbrido de tudo o que vimos. Mas pensamos numa instituição que trouxesse um modelo em que a pluralidade de vozes – tanto dos artistas convidados, quanto dos aprendizes – dariam o tom ao ensino. Isso sem perder de vista a necessidade de qualificação de trabalhadores nas áreas de sonoplastia, iluminação, técnicas de palco, cenografia, cenotecnia e figurino, entre outras.
O projeto da Instituição abarca a noção de conhecimento sistêmico, um modelo pedagógico que, mais do que puramente treinar um aprendiz, educando-o no desempenho de suas destrezas, cria oportunidades para que ele investigue, experimente e compreenda a importância do seu engajamento ético no processo global de formação profissional. Esta é a verdadeira vocação da SP Escola de Teatro.
Dentro dessas perspectivas, o educador Paulo Freire é um dos inspiradores do projeto educacional de nossa Escola. Além de suas teorias, o programa pedagógico da Instituição foi estruturado também com base em outros dois pensadores: o geógrafo Milton Santos e o físico e ambientalista Fritjof Capra.
Do geógrafo Milton Santos, buscamos o conceito de território e sua aplicação no processo teatral. Para Santos, o espaço é o local para a produção do homem, é onde se dá a relação do ser humano com a totalidade da natureza e a intermediação da técnica, sendo que a técnica, para ele, corresponde à produção humana.
No livro “Pobreza Urbana”, Santos prega que não existe cidadania em um mundo apartado. Diz que é preciso construir a cidadania e isso implica num sentimento de compaixão e de união para um bem comum.
Já do físico e ambientalista austríaco Fritjof Capra, buscamos as noções de que num sistema vivo e comunitário há relações de interdependência entre seus componentes, portanto, deve haver cooperação generalizada, reciclagem da matéria, tendendo sempre ao equilíbrio.
Aglutinando teorias destes três mestres, chegou-se à conclusão de que os Cursos Regulares da SP Escola de Teatro deveriam ser estruturados em Módulos, unidades de formação que visam investigar, refletir e possibilitar aos aprendizes a conquista de um processo de “saber-fazer”, apoiado na prática, que resulta no “saber-ser”, que vem amparado pela formação teórica.
Os sujeitos envolvidos na ação, formadores e aprendizes, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Partimos da premissa de que não há docência sem discência: ambas se explicam e se complementam.
O sistema pedagógico modular, que busca quebrar a ideia de ensino acumulativo, utiliza-se da prática como base do processo formativo e está voltado às áreas técnicas, dialogando com a realidade de trabalho dos profissionais do teatro. A Escola entende que o conhecimento não se dá por meio de mecanismos de acumulação, mas de expansão, desdobramento natural de janelas do fazer artístico.
A compreensão global do artista e do ser humano cria uma dinâmica de mão dupla entre o formador e o aprendiz. Confluem aptidões, autobiografias e visões de mundo em prol de uma formação contínua e polar. O esforço é pelo intercâmbio de saberes teóricos, formais e sensibilizadores na esteira das histórias pessoal e coletiva e passa ao largo do regime de subordinação, herança das pedagogias tradicionais.
“A simbiose formador-aprendiz, no entanto, jamais anula seus papéis nessa relação. Que fique claro que a ideia de não hierarquia refere-se especificamente aos conteúdos programáticos e não à relação entre um e outro”, diz o texto do Projeto Pedagógico da SP Escola de Teatro. O conhecimento avança na escala dos trabalhos prático e reflexivo, concomitante ao ritmo conjugado por aprendizes e formadores, ressalvando-se sempre a criticidade e o respeito mútuo.
Na SP Escola de Teatro, a mudança de “Disciplina” para “Componente” não é apenas semântica. Representa um comprometimento com outra forma de educar, na qual o conhecimento é construído junto ao aprendiz, de modo integrado e articulado, sem estar condicionado ao acúmulo temporal de conhecimentos. Isso não exclui, de modo algum, o rigor que esperamos dos aprendizes e sua capacidade de vivenciar com responsabilidade, comprometimento, diálogo, solidarie-dade e cidadania às 1.980 horas de aula oferecidas em cada um dos nossos cursos, divididas entre os quatro Módulos.
Querido Ivam, que delícia saber destes processos todos.
Tenho lido bastante a respeito, quero saber mais desta educação que se faz necessária nos dias de hoje. Educação de tutoria, que entenda o conhecimento como não-cumulativo e compreenda os diversos saberes que existem além da academia. Muito mais inteligente e interessante.
Já leu Religião para Ateus, do Alain de Botton? É excelente e traz tudo isto à tona.
Nos falamos.
Um beijo.
precisamos trocar mais, isabella. tenho perseguido a pedagogia nos últimos tempos. um assunto cada vez mais urgente. talvez seja tema do meu doutoramento.