ADEUS | Para Silvio, com Teatro

Silvio Pozatto desviveu hoje.

Para falar de morte, desviver é verbo que eu prefiro. Não se trata apenas de morrer, mas de deixar de pulsar num mundo onde a presença era mais que corpo. Era gesto, luz, voz, memória. Silvio era dessas presenças que habitam mais do que ocupam. Um homem de cena e de cena inteira: ator, fotógrafo, apaixonado. Um amante confesso do teatro em todas as suas frestas, do brilho à coxia, da palavra à penumbra.

Meu conterrâneo, nascido onde também nasci, Ribeirão Claro. Primo da minha irmã, desses laços que se misturam entre o sangue e o destino, Silvio foi nossa primeira estrela a pisar as telas. Eu era adolescente, e ele já brilhava nas novelas. Um feixe de possibilidades vindo do mesmo chão em que jogávamos bola ou ouvíamos o sino da igreja tocar. Se ele podia, por que eu não?

Nos encontramos de fato mais tarde, já adultos, no Rio, onde ele vivia. Eu estava em turnê com uma peça e ele veio ao teatro. E ali, entre bastidores e abraços, nasceu uma amizade feita de afeto maduro, respeito e memória compartilhada. Anos depois, escrevi um papel para ele. Era 2008, o telefilme A Noiva, da TV Cultura. Silvio era o padre da história. E, talvez, também, da história da minha vida naquele tempo. Alguém que aparecia com uma benção cênica, uma delicadeza rara de entrega.

Entre nós, sempre, uma presença delicada: Patrícia Pillar. Amiga de ambos. Nunca fomos os três juntos ao mesmo lugar, ao menos não ao mesmo tempo. Eles, velhos companheiros de estrada. Eu, uma amizade que brotou mais tarde, como uma flor que se abre fora do tempo esperado. E havia, talvez, um leve estremecer no ar quando falávamos dela. Não era bem ciúme, era um cuidado antigo, desses que sabem o quanto custam certas amizades. Não daqueles que ferem, mas dos que sinalizam o valor de um vínculo. Como quem diz: “ela é minha irmã também”. E era.

Nos últimos tempos, o silêncio foi crescendo entre nós. Não por desamor, mas por cansaço. Silvio adoeceu. Estava no Retiro dos Artistas, lugar de dignidade e abrigo, mas também de despedidas ensaiadas. Aquelas que se fazem aos poucos, num apagar de luz que dura meses ou anos. Eu pensava nele, mas já não era fácil fazer uma ligação. A vida às vezes exige que a gente ame em silêncio, torcendo por dentro.

Hoje, esse silêncio virou ausência.

E o que se faz com a ausência de alguém que foi estrela na sua infância, cúmplice na maturidade e referência ao longo da vida?

Silvio agora se junta aos que nos vigiam de longe. Aqueles que um dia iluminaram palcos e hoje iluminam nossas memórias. Fica a saudade. Essa forma elegante da dor. E fica, sobretudo, a gratidão. Porque em cada peça, em cada clique, em cada conversa, ele deixou um pouco de beleza. E a beleza, como se sabe, não morre.

Desviver talvez seja isso: deixar de estar, mas continuar sendo.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1877

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo