Na semana passada, Patricia Pillar e Zé Renato estiveram me visitando na SP Escola de Teatro. Tarde para sonhar mundos e falar de arte, de cinema, de teatro. Mas, sobretudo, da Praça Roosevelt, de música e relembrar que a praça foi o berço paulistano da Bossa Nova.
Zé Renato foi uma das grandes vozes da minha geração. Era finalzinho dos anos 1970, eu era adolescente e vivia em Ribeirão Claro, no interior do Paraná, quando ouvi pela primeira vez o Boca Livre, grupo do qual Zé Renato era vocalista, compositor e violonista, e iniciou sua carreira.
Não me esqueço desse momento. Era como se, ali, o mundo se dividisse, de repente. A sofisticação daquele quarteto – formado, ainda, por Maurício Maestro, Cláudio Nucci e David Tygel –, principalmente vocal, chegava ao mundo com jeito de primavera. O refinamento musical de seus integrantes colocava o grupo no panteão dos grandes intérpretes brasileiros. Eu tinha 16, 17 anos, então tudo era novo e, naquele momento, o mundo inteirinho parecia caber dentro de uma canção do Boca Livre.
Mas foi alguns anos depois, quando já estava vivendo em Curitiba, em 1988, que Zé Renato, em carreira solo, lançou “Pegadas”, um disco lindo que trazia, pelo menos, uma obra de primeira grandeza; pra mim, o registro definitivo de “Amor em Paz”, de Tom e Vinícius, interpretada por Zé, com Tom ao piano e Jaques Morelenbaum no violoncelo. Seguramente um dos momentos mais extraordinários que a MPB já produziu.
Então, na Praça Roosevelt, com meus amigos cariocas – que não são cariocas, exatamente, porque Patricia é brasiliense e Zé, capixaba – fomos lembrando das casas noturnas dos anos 1960, como Cave, A Baiúca e Farney’s, que ficavam na calçada onde hoje residem Os Satyros, a SP Escola de Teatro, o Cine Bijou e os Parlapatões.
Me lembrei de ter encontrado em biografias que li que, em 1959, Sarah Vaughan já era considerada uma das maiores cantoras do planeta e, nessa época, passou um tempinho em São Paulo e perambulou muito pela Praça Roosevelt. Naquele momento, João Gilberto acabara de lançar “Chega de Saudade”, o disco considerado o marco inaugural da Bossa Nova. Na Baiúca, Sarah conhece – e se apaixona – pela perfeição do piano de Johnny Alf e o convida para acompanhá-la em trabalhos nos Estados Unidos. Alf recusa o convite e, por mais de uma década, continuará a trabalhar na Baiúca, acompanhando nomes como Maysa, Alaíde Costa e Wanda Sá, que se apresentavam com frequência no local, em uma época em que o centro da cidade não tinha violência e que não havia tanta sujeira pelas calçadas da Praça Roosevelt.
Recordei, daí, que conheci A Baiúca em 2000, quando chegamos na praça. Embora encontremos registros que a casa noturna fechou suas portas em 1994, podemos contestar, de certa forma. Porque, sim, em 1994 o local mudou de ramo, mas não de nome. Gerido por uma família – pai, mãe e uma filha, não me lembro seus nomes – A Baiúca, ao invés de trabalhar com música e investir na noite, passou, de 1994 a 2001, a oferecer comida a quilo.
Foi assim que conhecemos A Baiúca, almoçando muitas vezes ali, num amplo espaço onde havia um piano encostado em uma das paredes laterais. Ficava no endereço onde hoje reside uma loja de uma grande rede de supermercados.
Paramos de comer na Baiúca porque, um dia, o Rodolfo encontrou uma barata no buffet do restaurante. Nunca mais voltamos ali. Mas me lembro como se fosse hoje, um tempinho depois desse incidente, era manhã e eu estava passando em frente ao estabelecimento. Os funcionários – umas sete, oito pessoas – estavam na porta fechada do restaurante, tentando entrar, revoltados porque há meses não recebiam seus salários.
Foi assim que A Baiúca deixou definitivamente a Praça Roosevelt, em 2001. E foi assim, desse jeito, que conhecemos o Alemão, 30 e poucos anos, o namorado fisiculturista e lutador de MMA da filha dos proprietários, que resolveu não ir embora com a família da moça e ficar por ali, morando nas calçadas da praça. E foi desse jeito, exatamente assim, que a gente foi vendo, nos anos que se seguiram, o moço se enterrar na bebida, perder os dentes, todos, e ficar abandonado, completamente, até ser encontrado morto numa manhã fria, em um dos canteiros gramados da praça, na época um amontoado de concreto.
Não cheguei a contar essa história para a Patricia e o Zé. O clima entre a gente estava tão gostoso e leve que tive medo de perder o tom. Afinal, era dia de reencontro e de falar também sobre futuro. Porque a Patricia produziu e o Zé vai lançar, em breve, um novo álbum. E porque os dois são o extremo da delicadeza, preferi ficar com as boas recordações e celebrar o encontro. E celebrar a vida também. Porque, sabemos, há muitas guerras pelo mundo e isso nos entristece. Melhor celebrar o amor.