NÚCLEO DURO | 4 Questões para uma legião de personagens – Uma Entrevista com Julia Bobrow – Por Marcio Tito

Por Marcio Tito

Atriz subjetiva e quase nunca literal, capaz de produzir caricaturas e não se definir pelo arquétipo, com ampla gama de personagens e sempre coerente, com uma clarísisma linha de pesquisa tão autoral quanto arejada pelos ânimos da Cia Os Satyros, Julia Bobrow é a “personagem” da vez.

Sua fala clara e decidida amplia as nossas noções sobre autoria, no contexto da pesquisa de grupo, e torna nítida a sua predileção por variações sobre o mesmo repertório. Eis um depoimento de praticidade e estilo.

Boa leitura!

Marcio Tito – O que você nunca quis que a sua personagem Antena transmitisse? Acho que muitas vezes a nossa luta no palco é por negar um padrão (muito mais do que para definir alguma mensagem). O que você recusou neste processo?

Julia Bobrow – Desde que fiz a primeira leitura do texto fiquei encantada com a personagem Antena. Uma personagem profunda, cheia de questões, camadas e contradições.

De certa forma, ela é a “mocinha” da história e acho que existe um certo rótulo de que as mocinhas são ingênuas, boazinhas e muitas vezes vítimas. Então eu tentei fugir desse padrão, até porque não vejo a Antena assim.

Acho que ela é uma mulher forte, que como todos nós acumula traumas durante a vida e que está passando por um momento de fragilidade diante dos últimos acontecimentos de sua história.

Não gostaria que ela fosse vista simplesmente como vítima, e sim como uma pessoa enfrentando seus fantasmas. Procurei criar uma movimentação mais pesada e uma voz forte para a personagem, pra trazer o contraponto da fragilidade.

Afinal, ninguém é uma coisa só. Foi bem desafiador dar vida à Antena, sabemos que os vilões costumam ser muito mais carismáticos e têm mais facilidade de ganhar o público. Por isso, só tenho a agradecer ao Ivam e ao Rodolfo por terem me dado esse presente como atriz.

Por outro lado, acho que se quisermos analisar o aspecto político da peça, podemos fazer a leitura de que Antena representa o povo brasileiro, a democracia, e as pombas representam os nossos governantes, as nossas escolhas políticas e ideológicas, individuais e coletivas.

“Cabaret Stravaganza” por Adriana Spaca

Marcio Tito – Um grupo com pesquisa sólida como Os Satyros não esconde predileção por temas e estilo, e você? Qual expediente você utiliza e reutiliza nas suas construções?

Julia Bobrow – Sempre que eu começo a construção de uma nova personagem eu vou atrás de referências. Pessoas que de alguma forma me lembrem essa figura, personagens de filmes, de outras dramaturgias, até de livros. Às vezes, acabo não usando nada disso, mas me ajuda a ter um ponto de partida na pesquisa.

Dedico bastante tempo a descobrir como é o corpo, a voz, a respiração, os gestos. Gosto de decorar o texto exatamente como está no papel e de criar uma partitura de movimentos em cena que tento seguir à risca.

Claro, o teatro é vivo, imprevistos acontecem e dançamos de acordo com a música, mas eu sou bem rigorosa em tentar seguir o que eu criei, o texto escrito e as marcas do diretor. Sobre predileção por tema, eu tenho muito interesse por personagens com transtornos mentais.

Desde minha adolescência, luto contra a síndrome do pânico e a depressão e, mesmo tendo cada vez mais pessoas lidando com doenças psiquiátricas, mesmo sendo um assunto cada vez mais falado, ainda existe um estigma. Inclusive, a primeira peça profissional que fiz foi “Rosa de Vidro, de João Fábio Cabral, dirigida por Ruy Cortez. Nela, eu interpretava Rose, a irmã de Tennessee Williams que passou por uma lobotomia pré-frontal porque na época pessoas com questões psiquiátricas eram consideram loucas, incapazes. A frase de Rose Williams “a loucura é pior que a morte” vive ressoando em minha cabeça.

“Pessoas Perfeitas” por Eduardo Lempo

Marcio Tito – Qual a principal transformação do público ao longo dos anos? Como você percebe a plateia hoje em dia?

Julia Bobrow – Acredito que o público é parte fundamental da peça. É impressionante como no teatro cada dia é único e não só pelos atores, pelos operadores de luz, de som, contrarregras, etc.

O público transforma a peça a cada sessão. A gente sente muito pelo público como foi cada apresentação. Impossível não sair de cena e comentar com alguém do elenco sobre “como está o público”.

Essa também é uma das belezas do teatro, a troca com a plateia. Se for para falar de uma transformação no público, seria que ao longo dos anos percebo que as pessoas estão muito mais dependentes de seus celulares. Todos nós, em qualquer lugar, queremos estar conectados.

“Pessoas Brutas” por André Stéfano

É como se o celular fosse uma extensão do corpo humano. Por isso, hoje em dia é mais comum ver alguém mexendo no celular durante a peça. Isso é inevitável, uma questão da sociedade com a tecnologia, com a comunicação, não há muito o que fazer.

Atrapalha? Atrapalha. Mas não tenho do que reclamar, nós sempre tivemos pessoas muito interessadas e respeitosas assistindo nossos espetáculos.

Essas pessoas são exceções que antes também já havia de outros jeitos (por exemplo, aquele barulho insistente de papel de bala).

Marcio Tito – Uma personagem que mudou a sua forma de criar dentro da companhia:

Julia Bobrow – A primeira peça d’Os Satyros de que participei foi “Liz”, em 2009. Depois, “O Dia das Crianças”, no mesmo ano, e “Roberto Zucco”, em 2010.

A partir daí, a gente fez várias peças performativas, em que a gente não fazia necessariamente um personagem. A pesquisa do Rodolfo e do Ivam estava bem voltada para o teatro expandido (uso de novas tecnologias em cena, internet, robôs, telefones). O Rodolfo tem até uma tese de mestrado sobre o teatro expandido para quem se interessar em saber mais do assunto. Aí, em 2014, Ivam e Rodolfo escreveram “Pessoas Perfeitas”, que vejo como a inauguração de uma nova fase n’Os Satyros. Um texto com história, começo, meio e fim, personagens superdesenhados.

A partir daí, acho que também mudou minha forma de criar dentro da companhia. Nessa peça, eu fazia a Medalha, uma menina mística do interior que se muda para São Paulo. E com incentivo e ajuda do Rodolfo, eu descobri uma voz extremamente aguda para a personagem.

Digo incentivo e ajuda porque nós atores, como a maioria das pessoas, somos cheios de inseguranças. Eu tinha um certo medo de sair da minha zona de conforto, daquele lugar que eu já conhecia, para me arriscar. E esse foi um grande passo para eu me sentir mais confiante para criar, errar, acertar, mas sempre buscando coisas novas. “Pessoas Perfeitas” acabou virando uma trilogia, a “trilogia das pessoas”, junto com “Pessoas Sublimes” e “Pessoas Brutas”.

E até hoje eles vêm escrevendo peças com personagens incríveis. Aliás, se tem uma coisa que o Ivam e o Rodolfo fazem é escrever personagens maravilhosos. Eu amei fazer cada um deles: Disneylândia, Imara, Bola. E espero que venham muitos outros pela frente.

“Os Condenados” por André Stefano

 

Fonte: ,Deus ateu

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