O SINO E O RITUAL OU UMA CELEBRAÇÃO PARA DESMONTAR NOSSOS ORGANISMOS

Em várias culturas, do Extremo Oriente à Europa, o sino é o elo social com a celebração. É ele quem me convoca para que eu deixe de ser um e seja, ainda que por poucos minutos, parte do todo.

O que mais me interessa no teatro é o terreno do ritual, o da celebração. A celebração é o lugar do encontro; é onde nos posicionamos em igualdade e em horizontalidade.

Na celebração, nos irmanamos e, embora tenhamos muitas vezes a figura do sacerdote ou do prelado ou do mestre a conduzir este ritual, neste lugar somos iguais e, juntos, podemos sonhar, mudar o mundo, pensar ou projetar algo novo. O ritual é, portanto, sempre o lugar do possível.

Um ritual, no entanto, necessita ser instaurado.  Pode ocorrer de diversas e inusitadas formas. Seja através de um cântico ou simplesmente de um retumbar de tambores.

Em várias culturas, do Extremo Oriente à Europa, o sino é o elo social com a celebração. É ele quem me convoca para que eu deixe de ser um e seja, ainda que por poucos minutos, parte do todo.

Na  minha infância, o sino me chamava para ir à igreja. Tocado em ritmos e intensidades diferentes, ele anunciava o tipo do encontro que se daria. Para a missa, por exemplo, eram várias  badaladas firmes e curtas. Às vezes, o sino também anunciava coisas tristes. Se o chamamento era para um enterro, ouvíamos uma sequência de badalos solitários e espaçados.

No teatro, uma sequência de sinais – primeiro, segundo e terceiro – anuncia o início de um ritual, o espetáculo.  Na época de Molière, havia o bastão, que, havia o bastão, que, batido contra o chão, pedia silêncio e conclamava para a peça. Hoje, o mais comum é que esse aviso venha ao som de uma campainha.

De todo modo, o que importa é que sempre houve um chamamento para um ritual e tanto faz se ele vem com o som da madeira contra a madeira ou das campainhas contemporâneas.

Quando nós, dos Satyros, chegamos à Praça Roosevelt, há mais de 10 anos, decidimos que no lugar das tradicionais campainhas eletrônicas usadas nos teatros hoje em dia, soasse um sino. Assim, os três sinais tradicionais tocados antes de cada récita se transformaram em um chamado para a celebração e um sino foi colocado ao lado de nossa bilheteria.

Importante frisar que isso acontecia concomitantemente a uma outra liturgia que já estava presente na Praça Roosevelt: os sinos da Igreja da Consolação, que, à época, eram de bronze (infelizmente, hoje foram substituídos pela imitação digital de badaladas).

Fizemos o mesmo quando abrimos o nosso segundo espaço na Praça. E assim procederam também os Parlapatões e, tempos depois, o pessoal do Mini Teatro.

Agora, pensando em Milton Santos e na questão da Territorialidade, quisemos trazer esta ideia para a unidade do Brás da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. E foi assim que, no último sábado (17), no primeiro Território Cultural do ano, o sino de nossa Escola badalou pela primeira vez, pontualmente às 9h, chamando nossa comunidade para os trabalhos do dia.

Algum tempo depois, às 13h, se ouviram novas badaladas. Agora, para anunciar uma pausa e convocando a todos para uma refeição. Mas não era um almoço qualquer, era uma comunhão, para a qual todos – aprendizes, coordenadores, formadores e direção – trouxeram  seus alimentos. Uma grande festa aconteceu neste momento em que o mais importante não era dividir a comida servida, mas compartilhar.

Afinal, o ritual – já nos ensinou Artaud – é o local da reconstrução do corpo, onde nos conectamos com os opostos e o mundo pode ser reinventado a partir de seu inverso. Porque a celebração sempre abre uma porta para outra relação com o tempo. Sem ordem cronológica, é importante trabalharmos com a ideia do eterno presente; um estado de suspensão, portanto.

Um ritual que não traga necessariamente proximidade com o ato cerimonial mas – e principalmente – com qualidades de ações. Assim, em nossa celebração, o importante é estar presente, inteiro, porque na SP Escola de Teatro nossa arte exige muito trabalho, para além do aspecto lúdico. Procuramos nos conectar com nossos conflitos originários que, há muito, foram congelados. E, sabemos que, para nos confrontarmos verdadeiramente com eles, devemos “desmontar o organismo”.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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