CINCO APONTAMENTOS PARA UM TEATRO (AINDA) POSSÍVEL

Marta Baião, com Cacalo Campos e Henrique Mello ao fundo, em cena de "Justine", 2009

1 – Arte primitiva
Arte primitiva, que depende de corpos e respirações, suores e cheiros humanos e exalações, o teatro tem que encontrar seu lugar na sociedade pós-industrial, não através do mimetismo (teatro como cópia do social), mas justamente através da sua não-presença (aquilo que foi negado ao homem da sociedade contemporânea, mas vive dentro dele).

O que vem sendo negado pela sociedade é a dimensão da dor, do prazer como experiência plena, da desalienação. Também é negado o artesanal, o não-lucrativo, o desinteressado. Essa deve ser a trilha do teatro do nosso tempo. Porque nela sobrevive a respiração fundamental do homem, a não ser esquecida jamais, porque nela sobrevive a arte do palco.

2 – Teatro crítico

Crítico porque não afirma as bases da sociedade, mas busca destruir essas bases, para refazê-las naquilo que ela tem em potencial mas luta por oprimir por considerar perigoso à manutenção do status quo. Crítico também porque não aceita a fórmula estética repetitiva no seu fazer, o que seria uma etiqueta de marketing para o artista. Crítico também porque usa formas antimercantis de manifestar os conteúdos da arte. Negar criar o que se diz “natural” e negar assumir o que seria “identidade” significa, fundamentalmente, afirmar a liberdade.

3 – Indústria cultural e as utopias

Sim, indústria cultural existe. E está aí, no jogo do mercado cultural. Mas o teatro não pode se ater aos seus princípios. Os únicos princípios devem ser os da expressão das verdades estéticas submersas. E se para expressá-las há inviabilidade de “capitalização”, esses princípios devem valer mais do que as regras do lucro. Chega de ouvir dizer: “Belo espetáculo, mas vocês devem apresentá-lo em salas maiores, para ganhar mais.”

Superar a dificuldade da sua inviabilidade econômica é também uma manifestação do teatro, que fica implícita no valor estético da obra. Convivemos com a indústria cultural como convivemos com a desigualdade social, a hipocrisia moralizante e os conflitos sociais: fatos que devem fazer parte do nosso imaginário, mas que não podem nos dominar.

A indústria cultural procura justamente a produção em série, para consumo imediato, atendendo segmentos de consumidores. O teatro não pode ser feito para consumidores que buscam a satisfação de desejos fugazes, mas para homens e mulheres que busquem outras hipóteses de existir na sociedade e diante de suas próprias vidas. Ao desprezar a dimensão de teatro como produto a comercializar, o teatro busca a liberdade da Arte, na qual a Sociedade pode realmente ser reconstruída.

As utopias totalitárias também acabaram. E, com elas, a fonte fundamental de negação do status quo vigente. Se outras utopias sociais não são factíveis, restaria acreditar que a utopia é o aperfeiçoamento do sistema em que vivemos, é o que nos ensina o próprio sistema. Então, o teatro deve continuar exercendo essa função crítica, mais do que nunca, propondo novas condições de estar no mundo para a sociedade, em doses virulentas e atômicas. Pulverizar, fragmentar as verdades, negando uma Verdade Absoluta que nunca virá. Este não é o melhor dos mundos, nem o pior deles, está em movimento e podemos fazê-lo se mexer.

A História nunca acaba. A utopia do teatro é que o mundo vai sempre poder ser outro, porque nele existem milhões de potencialidades. Cabe ao teatro resgatar essas potências incansavelmente para que ela (sociedade) possa se transformar em outra.

Assim, o teatro empreende essa busca: revelar o reprimido, o recolhido, o não expresso, mas que funda nossa persona social.

4 – Erudito e popular

Arte popular e arte erudita não mais existem na forma como existiam nos tempos de Adorno. Todas se transformaram em segmentos da indústria cultural, podendo ser compradas a preços módicos.

Num país com injustiças sociais tão descabidas, limitar-se ao erudito ou ao popular significa excluir a possibilidade de inserção do outro nos limites da experiência estética.

Devemos buscar o teatro popular no sentido arcaico do termo, na experiência que é acessível a instruídos e não instruídos, a todas as classes sociais, com diferentes camadas de compreensão e significação que cada pessoa vai assimilar conforme sua formação intelectual, mas que não inviabiliza a fruição estética.

Afinal, em uma sociedade com desigualdades tão gritantes, o teatro deve entender a dimensão de arte burguesa que as artes cênicas tendem a ter e superá-la, para tentar se relacionar com outros segmentos sociais. Democracia teatral é o lema.

5 – Técnica teatral

A técnica não pode ser negada, sob o risco de não se realizar arte.

Devemos dominar os meios técnicos de ser ator, diretor, sonoplasta, cenógrafo, figurinista. Mas o domínio técnico não pode jamais suplantar o que está sendo discutido, o eixo da obra. Algo precisa ser expresso, a técnica para expressá-lo é fundamental. Mas a técnica, sem o que deve ser expresso, é simulacro. Quando a técnica é lançada ao primeiro plano e o conteúdo é secundarizado, acontece o pior: o teatro se transforma em mistificação barata.

A limitação técnica também pode ser usada a favor do teatro, quando é autenticamente relacionada com os conteúdos e opções formais do espetáculo.

A técnica contribui sempre, e quanto mais se desenvolve e admite influências, mais se enriquece e facilita a expressão do artista. Ser um artista significa se reciclar constantemente, criticando e buscando superar suas limitações.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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